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sexta-feira, 27 de março de 2015

Um padre que dizia que borboletas viravam beija-flores

Uma postagem sobre o beija-flor (sim a ave!) pode parecer fora de lugar em um blog cujo principal tema é a História. Sustento, porém, que o assunto é perfeitamente adequado, já que, com ele, perceberão os leitores como andava a ornitologia do Século XVII - ornitologia de um padre, que fique bem entendido e, sendo mais específica, do Padre Simão de Vasconcelos, jesuíta e autor, entre outras obras, das Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil.
Mas vamos ao beija-flor. O Padre Simão de Vasconcelos principia por explicar os nomes indígenas que lhe eram atribuídos, passando depois a uma descrição, digamos, algo mais objetiva ou nem tanto:
"Chamam a este passarinho em geral os naturais da terra goanhambig; em particular a umas espécies, chamam goaraciaba, que quer dizer raio do sol; a outras quoaraciaba, que quer dizer cabelo do sol, e a outras põem outros nomes, segundo o modo de sua formosura, que é tão vária e aprazível, que não poderá arremedá-la o mais destro pintor com as mais finas tintas: rouba o verde do colo do pavão, o amarelo do pintassilgo, o louro do papagaio e o vermelho do guará ou tié, porém quebradas todas estas cores, e modificadas com tal primor, que parece que nem são aquelas, nem delas deve coisa alguma àqueles pássaros. [...] É ave mui pequena, quatro delas não fazem o corpo de um só pintassilgo. Tem a cabeça redonda, bico comprido, vive somente do orvalho das flores [sic], por cuja falta, sendo tomada viva, morre logo. Seu voo é ligeiríssimo, quase não se enxerga no ar [...]." (¹)

Veja se a descrição do Padre Simão de Vasconcelos corresponde à realidade...

Até aqui, a descrição chega a ser aceitável, sabendo que o objetivo do jesuíta Vasconcelos era informar a quem vivia na Europa sobre o que de mais interessante podia ser visto no Brasil. É muito boa, inclusive, a menção aos nomes indígenas. Começam agora, porém, as mais incríveis heresias que alguém poderá imaginar em se tratando de pássaros e, especificamente, de beija-flores:
"Esta avezinha, suposto que fomenta seus ovos e deles nasce, é coisa certa que é produzida muitas vezes de borboletas [sic!]. Sou testemunha, que vi com meus olhos uma delas meio ave e meio borboleta, ir-se aperfeiçoando debaixo da folha de uma latada, até tomar vigor e voar [sic!!!]." (²)
Convenhamos: o pior de tudo é, sem dúvida, a alegação de ser testemunha ocular dessa asneira cabeluda. Querem mais, leitores? Lá vai:
"Maior milagre se afirma dela constantemente e por tantos autores, que parece não  pode duvidar-se, que como só vive de flores, em acabando estas, acaba ela na maneira seguinte: prega o biquinho no tronco de uma árvore, e nela está imóvel como morta, enquanto tornam a brotar as flores (que são seis meses), passado o qual tempo torna a viver e voar [sic!!!!!]." (³)
Já é tempo de falar sério. Vejam quanto foi preciso mudar, em termos de mentalidade, para que um método de investigação científica, digno desse nome, chegasse a ser adotado. Sim, já houve gente envolvida com a ciência que afirmava candidamente que camisas sujas adicionadas a espigas de milho produziam ratos, ou mesmo que comida em decomposição gerava moscas. Havia também os homúnculos, claro. Como esperar que o Padre Simão de Vasconcelos, que não tinha nenhuma grande pretensão científica e que, além disso, devia estar impregnado da mentalidade religiosa de sua época, intensamente voltada ao misticismo, deixasse de acreditar que um beija-flor era meio ave, meio borboleta? 

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 282 e 283.
(2) Ibid., p. 283.
(3) Ibid., pp. 283 e 284.


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sexta-feira, 16 de maio de 2014

Tucanos


Gosto dos tucanos. Têm um jeito alegre e xereta. Pelo menos é o que parece. Não sei se eles realmente são assim, ou se somos nós, humanos, que queremos ver nossas características nos outros seres vivos. Os nativos da América, bem como os europeus que, no Século XVI, colonizaram o Brasil, também achavam os tucanos muito interessantes, mas por outros motivos. Escreveu Gabriel Soares:
"Tucanos são [...] aves do tamanho de um corvo; têm as pernas curtas e pretas, a pena das costas azulada, a das asas e do rabo anilada, o peito cheio de frouxel muito miúdo de finíssimo amarelo..." (¹)
Descrição rebuscada, essa, que, no entanto, não contempla o fato de serem muitas as espécies de tucanos. Retomando o "frouxel muito miúdo de finíssimo amarelo", Gabriel Soares acrescentou: "...o qual os índios esfolam para forro de carapuças." (²)
Dizia mais:
Tucano, de acordo com ilustração do
Século XVII (⁴)
"Têm a cabeça pequena, o bico branco e amarelo, muito grosso, e alguns são tão compridos como um palmo [...]. Criam estes pássaros em árvores altas, e tomam-nos novos para se criarem em casa; os bravos matam os índios à flecha, para lhes esfolarem o peito, cuja carne é muito dura e magra." (³)
A circunstância de saber como era a carne de um tucano faz supor que Gabriel Soares a havia experimentado, embora possa ter escrito apenas por ouvir falar. Não chega isso a ser surpresa, já que em tempos coloniais, e mesmo adiante, papagaios eram apreciados para uso culinário. Por que não tentariam o mesmo com tucanos?

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 226.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. 
A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Guarás


Guará, em ilustração
 do Século XVII (²)
Guarás, aqui, é bom esclarecer, não são os "lobos", e sim aves litorâneas, de penas vermelhas (Eudocimus ruber), que causaram forte impressão nos colonizadores europeus. Há, por exemplo, o relato é do Padre Fernão Cardim, que acompanhou o visitador jesuíta, Padre Cristóvão Gouvêa, em suas viagens pelo Brasil, e refere-se a acontecimento do ano de 1585:
"Ao dia seguinte, depois de jantar, partimos para São Vicente, e caminhando três léguas por um grande e formoso rio cheio de uns pássaros vermelhos que chamam guará, dos formosos desta terra, os quais são como pegas; os bicos são de um bom palmo e na ponta revoltos, e têm mui compridas pernas; [...]. Vivem junto d'água salgada e nela se criam e sustentam." (¹)
Já no Século XIX, outro clérigo, o Padre Ayres de Casal, iria escrever em sua Corografia Brasílica:
"Os formosos guarás, que são numerosíssimos na proximidade do mar, onde só habitam, quando pousam em bando sobre alguma árvore seca ou despida de folhas, esta fica vistosíssima." (³)
Mas acrescentaria esta nota, obviamente triste:
"As espingardas têm feito maior destruição nestes viventes em três séculos do que as taquaras dos indígenas em toda a antiguidade." (⁴)

Um glorioso descendente das aves que sobreviveram às taquaras e às espingardas

(1) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 98 e 99.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 203.
(3) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, pp. 262 e 263.
(4) Ibid., p. 263.


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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Tatus

Pra falar a verdade, acho repugnante a mania de ver os animais simplesmente como recurso para as panelas, mas é preciso admitir que, à vista dos colonizadores europeus que vieram viver no Brasil, era importante e até indispensável um conhecimento de que coisas eram "comestíveis", já que a sobrevivência na América dependia, ao menos em parte, desse saber. Nisso, os povos indígenas do Brasil eram excelentes mestres, dominando, com igual eficiência, diferentes métodos de caça. E, a crermos no que escreveram autores dos séculos XVI e XVII, a mais apreciada dessas refeições ambulantes eram os tatus.
Tatu ("Dattu"), de acordo com Hans Staden (¹)
Hans Staden, o aventureiro alemão que andou pela América do Sul por meados do século XVI (¹), referiu-se ao "Dattu", animalzinho dotado de uma armadura que em tudo lembrava aquelas usadas por guerreiros medievais, com uma couraça que lhe cobria as costas, firme e resistente como um chifre. Deixou bem claro que havia provado sua carne muitas vezes.
Também Pero de Magalhães Gândavo, que queria incentivar a vinda de portugueses ao Brasil, observou:

Tatu-Galinha (Dasypus novemcinctus) (⁵)
"Uns bichos há nesta terra que também se comem e se têm pela melhor caça que há no mato. Chamam-lhes tatus, são tamanhos como coelhos e têm um casco à maneira da lagosta como de cágado, mas é repartido em muitas juntas como lâminas; parecem totalmente um cavalo armado, têm um rabo do mesmo casco comprido, o focinho é como de leitão, e não botam mais fora do casco que a cabeça, têm as pernas baixas e criam-se em covas, a carne deles tem o sabor quase como de galinha. Esta caça é muito estimada na terra." (²)

Tatu-Peba (Euphractus sexcinctus) (⁵)
Finalmente, Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (³), observou:
"Há tatus, a que os espanhóis chamam armadillos, porque são cobertos de uma concha não inteiriça como a das tartarugas, mas de peças a modo de lâminas, e sua carne assada é como de galinha."
Notaram, senhores leitores, quantas comparações?
Concha semelhante a armadura, casco de tartaruga, como lagosta, focinho de leitão, semelhante a cavalo armado, carne como a de galinha... É que diante da surpreendente diversidade natural da América, os autores viam-se às voltas com palavras que pareciam por vezes insuficientes para uma descrição acurada, daí a necessidade de apontar similaridades, que dessem à gente da Europa alguma ideia daquilo que se queria descrever. Em alguns casos, só mesmo um bom desenho para ajudar, como é o caso deste que aparece na Historia naturalis Brasiliae, de Willen Piso e Georg Markgraf:

Tatu, de acordo com a Historia naturalis Brasiliae (Piso e Markgraf) (⁴)
 
(1) Hans Staden escapou, por muito pouco, de também ele virar refeição. Veja-se: STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, pp. 61 e 62.
(3) O manuscrito foi concluído por volta de 1627.
(4) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 231. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) Os tatus fotografados para esta postagem pertencem ao acervo do Museu de História Natural de Itapira - SP (tatu-galinha) e do Museu do Eucalipto, em Rio Claro - SP (tatu-peba), este último novamente aberto ao público, depois de um longo tempo fechado. Se puder, visite!


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quinta-feira, 1 de março de 2012

Quem pode escrever com a "pena de um vampiro"?

Para que meus leitores tenham um dia feliz, nada melhor que começar esta manhã com um sorriso. Como conseguir isto? Para quem tiver senso de humor, bastará ler o que vem a seguir, tratando das confusões que se faziam sobre seres vivos da América do Sul, assunto já abordado em postagens anteriores (¹)
Pois bem, a "vítima" do dia será o Padre Ayres de Casal, que certamente prestou um inapreciável serviço com sua obra em dois volumes, datada de 1817, a Corografia Brasílica, a despeito de deixar algo a desejar em questões, por assim dizer, "zoológicas". Vejamos, então, duas citações, e será suficiente, tenham certeza:
"O cupim é uma formiga pequena, esbranquiçada e gorda, que só se mantém do farelo de lenho [...]." (²)
E, se essa chega a doer, vem coisa pior. Referindo-se à Guiana Francesa, então ocupada por ordem da Coroa Portuguesa, o mesmo Padre Ayres de Casal escreveu:
"Posto que o vento leste refresque a atmosfera todas as manhãs, o ar é doentio por causa dos pântanos que o infeccionam, e criam multiplicadas espécies de insetos, como sejam mosquitos, sapos, rãs, moscardos, formigas e outros, que incomodam a gente." (³)
Cupins viram formigas, sapos e rãs são insetos - coisas que enlouqueceriam Carl von Linné. Mas, para não deixar Ayres de Casal solitário em tão má situação, concluo com uma referência literária de ninguém menos que Machado de Assis, em seu conto "Bagatela", datado de 1859:
"É um morto que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com a tinta negra do Estígio lago, e com a pena arrancada à asa de uma qualquer ave noturna ou maligna, vampiro ou o que quiseres."
Pena de um vampiro, Machado?

(1) Veja, sobre isso:
(2) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 74.
(3) Idem. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 357.


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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Emas e avestruzes

"Pelo tamanho, fazem-se notáveis os agigantados tuiuiús, os arteiros jaburus [...] e as corredoras emas, que são as avestruzes deste Continente."
                                                                               F. A. Varnhagen, História Geral do Brasil (¹)

Avestruz
Há poucos dias postei neste blog um comentário sobre algumas ideias absurdas (a ponto de serem engraçadas), que podem ser encontradas na mais que famosa carta do descobrimento do Brasil escrita por Pero Vaz de Caminha. Ora, meus leitores, ao longo dos séculos outros autores continuaram a cometer equívocos sobre animais e plantas da América do Sul. Um deles relaciona-se às emas que, por sua semelhança com avestruzes, chegaram a ser classificadas como tais. Que se veja, por exemplo, esta deliciosa comparação, tão dentro do espírito de sua época, anotada por Frei Vicente do Salvador no século XVII:
"... e emas tão grandes como as de África, umas brancas e outras malhadas de negro que, sem voarem do chão, com uma asa levantada ao alto, ao modo de vela latina, correm com o vento como caravelas..." (²)
Mais tarde, já no século XIX, a dificuldade em distinguir emas de avestruzes ainda persistia, até mesmo para um naturalista como Saint-Hilaire, de cujo diário de viagem ao Rio Grande do Sul e Uruguai, nos meses que antecederam a independência do Brasil, temos o seguinte trecho:
"Devorado pelas pulgas e mal acomodado, quando me deitava na carroça, preferi dormir sob a minha cama, sentindo-me muito bem com a troca. Região irregular com excelentes pastagens; não há feras, mas uma prodigiosa quantidade de jumentos selvagens, veados e avestruzes. No meio deste deserto constitui divertimento presenciar esses animais correrem nos campos. Os veados andam sempre em bandos. Como jamais são caçados, deixam-se ficar bem perto de nós, e os avestruzes igualmente não se mostram selvagens." (³)
Ema
A dificuldade com essas aves gigantes iria, porém, logo desaparecer. Ainda na década de 20 do século XIX Hércules Florence, desenhista a serviço da Expedição Langsdorff, não hesitou em asseverar que as corredoras que via no interior do Brasil eram emas:
"Uma ema passou por nós seguida de três filhotes com a velocidade quase da flecha." (⁴)
Entretanto, se alguma dúvida fica para algum de meus leitores, eventualmente menos familiarizado com a fauna do Brasil, estão nesta postagem fotografias tanto de uma ema quanto de um/uma avestruz (segundo os dicionários, as duas possibilidades são aceitáveis), tornando viável uma comparação.

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 11.
(2) História do Brasil. c. 1627.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 280.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 188.


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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Peru de Ação de Graças, peru do Natal


Deixar o lar na Europa e ir estabelecer-se em terras desconhecidas na América do Norte era uma enorme aventura, quase uma temeridade, nos anos vinte do século XVII. Entretanto, os chamados "pais peregrinos" o fizeram, e deviam ter bons motivos para isso - entre eles, fugir da perseguição religiosa que vinham enfrentado.
Ora, leitor, o primeiro ano na América foi terrível. Ao final dele (1621), entretanto, os sobreviventes resolveram agradecer pelo que tinham, fundando a prática do Dia de Ação de Graças, celebrado anualmente nos Estados Unidos. Em círculos mais restritos, comemora-se também no Brasil e em muitos outros lugares.
Pois bem, para festejar a data, esses colonos lançaram mão do pouco que havia, produto de suas colheitas ou caça disponível, e é aí que entraram em cena os perus: perus selvagens, aves nativas da América, desde o México até o Canadá, a ponto de, infelizmente para elas, virarem símbolo da data.
Na Europa, há suficientes evidências de que, trazidas pelos primeiros exploradores, os perus já eram conhecidos desde o século XVI e, sendo domesticadas, essas aves fizeram enorme sucesso devido à carne, considerada excelente.
No Brasil os perus foram, gradualmente, incorporados às tradições das festas de dezembro, Natal e Ano Novo. E, para se ter uma ideia do valor atribuído a essas aves (pior para elas, mais um vez), há vários registros de preços praticados em São Paulo em diferentes épocas. Temos os valores de outros itens de consumo, para efeito de comparação:

Em 1685:

Dúzia de ovos......................................................10 réis
Um pato................................................................40 réis
Uma perua...........................................................160 réis

c. 1700:

Um casal de pombos........................................160 réis
Três peruas e um peru.....................................640 réis (¹)

Um outro registro, de 1886, aponta os seguintes preços (²):

Quilograma de carne bovina, em média........................... 320 réis
Dúzia de ovos........................................................................ 500 réis
Uma galinha........................................................................... 650 réis
Um peru.................................................................................. 5.000 réis

Deve-se considerar que a enorme variação de preços tem, entre outras causas, a inflação decorrente da descoberta das minas de ouro nas Gerais e, mais tarde, em Goiás e Mato Grosso, disso decorrendo uma elevação sensível na demanda por suprimentos para os que viviam e trabalhavam nas lavras.


(1) Cf. TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 108.
(2) Ibid., p. 346.


Anúncio de ovos de peru, Revista A Cigarra, edição de
1º de agosto de 1914

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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 3): Piranhas!

"E rio abaixo, lá ia o fervedouro sanguinolento denunciando o martírio do animal, lançado, como tributo da boiada, aos cardumes vorazes das piranhas.
Os vaqueiros olhavam as águas trágicas onde os peixes borborinhavam e um tangerino moço, condoído do velho boi, suspirou:
- Coitado!"
                                                                                      Coelho Neto, Boi de Piranha in Vesperal

Elas nadam gentilmente quando não estão a atacar alguma presa e, para os incautos, a água dos rios e áreas alagadas em que habitam parecem "normais". No entanto, se são poucas, já representam algum perigo. Mas se forem muitas... É melhor nem pensar. São piranhas, peixes de dimensões aparentemente desprezíveis, mas os cardumes existentes em muitos cursos d'água Brasil afora impõem terror hoje, tanto quanto no passado. Muitos autores referiram-se a elas como criaturas assassinas, capazes de consumir um boi ou outro mamífero em pouquíssimo tempo, desde que reunidas em grandes cardumes. Infelizmente para os colonizadores do Brasil, cardumes eram a regra, não a exceção.
Alguns dos melhores relatos vêm, no entanto, de dias posteriores aos da colonização portuguesa. Há, por exemplo, a breve descrição do Padre Ayres de Casal (1817):
"[...] piranhas, que são curtas e largas, com dentes agudíssimos, e fatais a todo o vivente que podem alcançar." (¹)


O melhor informe que conheço, todavia, é de Hércules Florence. Transcrevo-o quase na íntegra, para que meus leitores, que porventura sejam seres urbanos e, por isso, inexperientes nessas questões silvestres, aprendam úteis lições. Diz ele, referindo-se à ocasião em que a Expedição Langsdorff percorria o Brasil Central, em área da bacia do rio Paraguai:
"Começamos a pescar piranhas, peixe abundante no Paraguai e seus tributários. Nos rios que vão ter ao Amazonas os há também, assim como nos de Minas Gerais, mas pululam nos lagos e campos inundados do Paraguai. Não têm mais de oito polegadas de comprido e seis de largo, entretanto é o mais temível de todos os peixes desses rios pela voracidade com que acomete todo e qualquer animal que caia dentro d'água. Têm dentes agudíssimos, na disposição e dimensões [...]." (²)
Adverte em seguida:
"Ai do imprudente que entrar nu em lugar infestado por aqueles vorazes habitantes; está perdido, sobretudo se tiver no corpo alguma ferida ou sarna. Eles se precipitarão sobre as chagas; farão verter sangue e em poucos instantes o infeliz perderá a vida." (³)
Assustador? Há mais:
"Quando a gente se banha em lugar de poucas piranhas, o perigo é diminuto, mas assim mesmo é preciso ter o cuidado de cobrir com as mãos as partes pudendas, porque por aí é que elas atacam de preferência. [...]." (⁴)
Então, deixando evidente que não estava discorrendo sobre uma fábula, Florence conta dois casos que presenciou e, sendo esse autor bastante confiável, não me parece haver razão para duvidar dele:
"Para dar ideia da multidão e voracidade desses animais, bastar-me-á contar o seguinte caso. Havendo um dos nossos camaradas caçado um macaco e querendo moqueá-lo, pôs-se a limpá-lo e em seguida o mergulhou no rio. Sacou-o porém depressa, com cinco piranhas atracadas à carne e que foram cair na proa da canoa. De cada vez que repetia a imersão, tirava d'água quatro ou cinco peixes, de modo que num instante contamos sessenta, pescados por modo que muito nos divertiu.
Jogou-se ao rio um corpo esfolado de capivara. Foi um espetáculo curioso. As piranhas, num formigar e torvelinho que faziam borbulhar e espadanar as águas, o espicaçaram, ora atirando-o para o ar, ora puxando-o para o fundo.
À medida que o sangue se espalhava, acudiam outras aos milhares, e em breve nada restou daquela presa." (⁵)


(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, 1ª ed., vol. 2, 1817, p. 187.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 86 e 87.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 2): Jacarés

"Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas, e em que o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol."
                                                                                                                         José de Alencar, Guarani

Diferentemente das cobras (que foram assunto de nossa postagem anterior), os jacarés sempre dividiram as opiniões dos colonizadores. Explico: se, por um lado, seu aspecto pareceu amedrontador, com toda aquela possante dentição à mostra, por outro, não demorou que sua caça logo interessasse a muitos que o tiveram na conta de fina iguaria, coisa que não aconteceu com cobra nenhuma. Os trechos de documentos que veremos a seguir demonstram bem essa dupla impressão.
Tendo percorrido o interior do Brasil entre 1825 e 1829 (¹), na condição de desenhista da Expedição Langsdorff, Hércules Florence deixou em seu diário uma interessante descrição de um lago em uma fazenda visitada, cujas águas pareciam bem convidativas, mas cujos habitantes inviabilizavam um banho, ainda que rápido, tudo narrado em vívida linguagem, que bem faz o leitor imaginar facilmente a situação:
"Se por si sós podem esses peixes (²) tirar o desejo de tomar um banho no lago, a presença de enormes jacarés em número superior a tudo quanto até então eu vira, basta para que até em tal nem se pense. Ouve-se-os roncar: veem-se-os no meio dos aguapés das margens, por toda a parte. O lago semelha uma caldeira de azeite a ferver, por tal modo agitam esses anfíbios [sic] a água, nadando rentes à superfície." (³)


Ora, para infelicidade dos jacarés, nem toda a carinha de maldade que têm impediu que os colonizadores se dispusessem a abatê-los, fosse porque, às vezes, os alimentos escasseavam, fosse porque alguns eram mesmo apreciadores de sua carne, sem falar nos usos que em pouco tempo seriam dados ao couro. Isso nos contam monçoeiros que, desde Porto Feliz, partiam via Rio Tietê até longínquas terras no interior do Brasil, como foi o caso, por exemplo, do governador português Dom Rodrigo César de Meneses. De sua ida a Cuiabá em 1726 há um relato feito pelo secretário Gervásio Leite Rebelo, no qual se lê:
"Em 27 e 28 do dito (⁴) se continuou a viagem com bom sucesso, houve bastante caça por ser este rio abundante de aves e de peixe, principalmente capivaras, piranhas e jacarés." (⁵)
Uma pausa aqui é quase obrigatória, para assinalar que, se o trecho mostra claramente que jacarés eram tidos como caça, mostra também que, ou o senhor secretário do governador não revisou o que escreveu, ou não tinha os mais elementares conhecimentos científicos, mesmo para seu tempo: como pode dizer que o rio era pródigo em aves e peixe e exemplificar isto com capivaras, piranhas e jacarés?!


Vamos adiante. Por meio de um outro relato monçoeiro, datado de 1751, desta vez feito por outro governador, Dom Antônio Rolim, o Conde de Azambuja, temos uma descrição de jacarés até detalhada. Compare-a, leitor, portanto, com as fotos desta postagem e veja se esse nobre português andou bem em suas palavras:
"Neste dia se matou o primeiro jacaré, a três ou quatro passos de distância da canoa, que tão pouco espantadiços são. Este, com ser pequeno, pelo que disseram, tinha seis palmos de comprido, quatro pés como lagarto, mais grosso no corpo que um homem pela coxa, rabo comprido à proporção do mais corpo. A pele, pela parte de cima, feita em cintas como armas brancas, é tão dura, que, dando-lhe à mão-tente com uma faca de ponta, apenas lhe entrou grossura de duas moedas de dez réis. A cabeça é comprida, os dentes de cão e sem língua." (⁶)

(1) Já fora, portanto, do tempo colonial.
(2) Os peixes eram piranhas, que serão assunto da próxima postagem.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 187.
(4) Outubro de 1726.
(5) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 121.
(6) Ibid., p. 203.


Veja também:

domingo, 13 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 1): Cobras

"Ele que não brinque com o Manecão; é homem de cabelinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela-lhe os ossos, como se fora veadinho do campo enroscado por sucuri..."
                                                                                         Alfredo d'Escragnole Taunay, Inocência

Faz alguns dias, uma sucuri  - de cerca de seis metros de comprimento - resolveu passear por ruas de Manaus e causou sensação. Tente imaginar, no entanto, a cara de espanto dos colonizadores que, há séculos atrás, tinham a fantástica oportunidade de deparar-se com uma cobra semelhante, em meio ao território desconhecido que procuravam devassar. Todo mundo sabe que animais do Brasil já aterrorizaram muita gente, e nesta postagem e nas próximas trataremos deste assunto.
Não é preciso ser arqueólogo de cinema para odiar cobras e, além disso, a humanidade parece ter boas razões para não nutrir grande simpatia por elas, embora sempre possa haver um ou outro admirador. Ainda no século XVI, Gândavo escreveu:
Jararaca (⁴)
"Há nestas partes muitos bichos feros e peçonhentos, principalmente cobras de muitas castas e de nomes diversos. Umas há tão grandes e disformes que engolem um veado todo inteiro, e afirmam que tem esta cobra tal qualidade que, depois de ter comido, arrebenta pela barriga e apodrece com a cabeça e a ponta do rabo sãs; e tanto que desta maneira fica, torna pouco a pouco a criar carne nova até que se cobre outra vez da mesma carne tão perfeitamente como dantes: isto viram e experimentaram muitos índios e moradores da terra, a estas chamam pela língua dos índios de jiboiaçu.
Outras há muito maiores e mais peçonhentas, de outra casta diferente, são tão grandes, em tanto extremo, que apenas dezesseis índios podiam levar uma que mataram junto da costa entre os portugueses; a esta cobra chamam surucucu.
Outra geração há delas que lhe chamam boiteninga, tem na ponta do rabo uma coisa que soa propriamente como cascavel, e por onde esta cobra vai, sempre anda rugindo, [sic!] é uma das feras bichas que há na terra.
Outras há na terra que lhe chamam hebijaras, têm duas bocas, uma na cabeça, outra no rabo, mordem com ambas: esta cobra é branca e muito curta, o mais do tempo está debaixo da terra, é peçonhentíssima sobre todas: quem desta for mordido não terá vida muitas horas, e assim qualquer destas outras que morder alguma pessoa, o mais que dura são vinte e quatro horas.
(...) Também afirmam alguns homens que viram serpentes nesta terra com asas muito grandes e espantosas, mas acham-se raramente." (¹)
Cascavel (⁵)
Bem, meus leitores, o problema, aqui, é que Pero de Magalhães Gândavo pretendia, com seu Tratado da Terra do Brasil, incentivar portugueses a virem viver no Brasil para colonizá-lo, mas, ao menos pelas regras atuais da propaganda, ele teria dificuldades em alcançar sucesso, com esse relatório intimidador. Além disso, falar em serpentes voadoras? Ora, haja imaginação!
De um pouco mais tarde, da primeira metade do século XVII, vem-nos o registro de Frei Vicente do Salvador, infelizmente não isento de sua quota de lorota:
"Há também muitas cobras, e algumas tão grandes, que engolem um veado inteiro, e dizem os índios naturais da terra que, depois de fartas, arrebentam, e corrupta a carne se gera outra do espinhaço (...), e algumas se viram já de sessenta palmos de comprido; em Pernambuco se enrolou uma destas em um homem que ia caminhando, de tal sorte que, se não levara um cão consigo, que mordendo-a muitas vezes a fez largar, sem falta o matava: e ainda assim o deixou tal, que nunca mais tornou às suas cores e forças passadas." (²)
E, se seguirmos a bibliografia disponível, séculos afora, iremos encontrando outros relatos, mais ou menos semelhantes, mostrando que petas podem perfeitamente passar de uma geração a outra, como se fossem a mais cândida verdade, simplesmente porque continuam a ser repetidas, sempre em companhia de informações verídicas, para dar um toque, digamos, mais autêntico.
Estudos sérios, mesmo, sobre os ofídios do Brasil, inclusive no que se refere a tratamento adequado em caso de "acidentes" com picadas, só viriam bem mais tarde. Enquanto isso não acontecia, só restava aos colonos ter muito cuidado por onde andavam, torcendo para não ter nenhum encontro indesejável com algum exemplar das temidas cobras do Brasil. (³) 

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil.
(2) SALVADOR, Frei Vicente do.  História do Brasil.
(3) Estudos envolvendo a classificação de ofídios foram desenvolvidos a partir do século XIX. O Instituto Butantan data do comecinho do século XX. Mesmo isso podia ser motivo para humor - veja a página da Revista A Cigarra, edição de 15 de junho de 1914, reproduzida mais abaixo.
(4) WIED-NEUWIED, Maximilian v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens. 
(5) Ibid.; esta cobra é conhecida popularmente como cascavel, boicininga, boiteninga, boiquira, além de outros nomes.


A legenda diz: "Um forasteiro reproduz no seu caderno os desenhos feitos pelos movimentos
de uma jararaca e, ao concluir o epigrama com que o mimoseou o réptil, aplica-lhe
fortes bengaladas".
Revista A Cigarra, edição de 15 de junho de 1914.

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domingo, 25 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 8): Preguiças

Preguiça com filhote (²)
As preguiças recebem o nome de preguiças porque nos parecem, afinal, preguiçosas! É como se vivessem em perpétua câmera lenta. Há uma bem conhecida lenda que conta que uma preguiça, estando na floresta quase ao nível do chão, viu uma belíssima fruta no alto de uma árvore. Tal fato aguçou-lhe o apetite, de modo que ela começou a escalar a dita árvore, mas à sua maneira, pre-gui-ço-sa-men-te. Finalmente, alcançou seu alvo, mas ao tocar a fruta, esta caiu prontamente ao solo. Estava podre. Por quê? A preguiça havia gasto tanto tempo na subida que, nesse intervalo, a tão apetitosa fruta completara seu ciclo de maturação, ficando pronta para liberar as sementes. Exagero à parte, isso dá uma ideia de quão velozes são as preguiças, ou, se quisermos ser justos, de quão velozes seu metabolismo permite que sejam.
Ora, perversamente, em sua aparência esses bichos têm algo de humanoide, logo eles a quem nomeamos por um dos piores defeitos que alguém poderia ter, um dos sete pecados capitais. Basta ver como olham, como se movem, como carregam os filhotes. No século XVII, Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escreveu:
Preguiça-de-costas-pretas (²)
"Outro animal há a que chamam preguiça, por ser tão preguiçoso e tardo em mover os pés e mãos, que para subir a uma árvore ou andar um espaço de vinte palmos há mister meia hora, e posto que o aguilhoem, nem por isso foge mais depressa."
Tal descrição pode fazer supor que as preguiças são seres frágeis, facilmente capturáveis. Nem sempre. Este exemplo é ótimo: a preguiça, ainda que mui preguiçosa, foi veloz o bastante para fazer suas lindas garras escaparem das unhas dos taxidermistas da expedição Langsdorff, conforme escreveu Hércules Florence, estando próximo à embocadura do rio Juruena:
"Foi aí contudo que agarramos uma preguiça, que atravessava o Juruena. Metemo-la numa canoa e à noite a amarramos a uma árvore: de manhã, porém, desaparecera." (¹)

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 222.
(2) WIED-NEUWIED, M. v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens.


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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 7): Cervos e veados

"Nesse tempo o meu maior prazer, senão o único, era caçar - sair na fresca da manhã, com as névoas ainda soltas, rolando, fluindo ao rés da terra molhada, num rijo cavalo, entre cães, a surpreender, na beira das lagoas ou nos matos, a paca esquiva, o caititu atrevido, a jaguatirica ou correr no campo o veado arisco, mais ligeiro que o vento que assobiava aos meus ouvidos."
                                                                                                               Coelho Neto, Água de Juventa

Cervos e veados parecem ter recebido a triste primazia, quando ainda eram numerosíssimos nos campos do Brasil, da preferência dos caçadores, tanto dos que os procuravam como alimento como daqueles que disparavam suas armas simplesmente por esporte.
Cervo do Pantanal
(fotografado vivo, bem vivo, e espero que assim continue)
Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, mais conhecido como Conde de Azambuja, mencionou, em seu relato da viagem desde São Paulo até Cuiabá, em 1751, que encontrou muitos desses animais pela altura do Rio Pardo, não deixando de fazer, digamos, observações gastronômicas:
"Além desta caça, há cervos, que são do mesmo feito e mais pequenos que os nossos veados. Há veados do tamanho de cabras; mas a carne mais tenra e gostosa que a dos nossos." (¹)
É quase desnecessário acrescentar que a comparação era feita em relação aos cervídeos que o conde português conhecera na Europa, antes que sua nomeação para o governo das minas de Mato Grosso o trouxesse ao Brasil, obrigando-o a empreender viagem pela rota das Monções. (²)
As peles de veado, assim como as de anta, tiveram largo emprego no Brasil  para confecção de uma série de objetos, dentre os quais, sapatos. Isso permitiu o desenvolvimento de um pequeno ramo de atividade de que podemos ter alguma ideia por uma anotação feita pelo naturalista Auguste de Saint-Hilaire em seu diário de viagem ao Rio Grande do Sul, no qual observa que,  na lista de coisas vindas de outras partes do Brasil para aquela Capitania,  haviam sido importadas de Santa Catarina em 1816, "195 peles de veado curtidas", o que nos leva a crer que a caça e exploração comercial desses animais eram, na época, usuais. (³)
O mesmo autor, narrando ainda suas viagens pelo território do Rio Grande do Sul e do atual Uruguai, acrescenta:
"Vi hoje, às margens da estrada, um rebanho de cervos que pastavam tranquilamente ao lado de avestruzes; eles não fugiram à nossa aproximação." (⁴)
Aqui tem-se a oportunidade de ver mais uma confusão entre seres vivos do Continente Americano e da África, dentre as muitas que se faziam na época - não eram avestruzes as aves vistas por Saint-Hilaire. Eram emas, claro, como o leitor já deve ter adivinhado.


(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 203.
(2) Mais tarde chegou a ocupar o cargo de vice-rei do Brasil.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 123.
(4) Ibid., p. 159.


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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 6): A capivara

"O sol deitou-se, e de novo se levantou no céu. Os guerreiros chegaram aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquela parte da montanha, que por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, a gente de Tupã chamava Ibiapina."
                                                                                                                          José de Alencar, Iracema

Hans Staden descreveu a capivara como sendo um animal que podia viver tanto na água como sobre a terra. Tinha, segundo ele, o tamanho superior ao dos cordeiros, a cabeça parecida com a de uma lebre e orelhas curtas, pernas altas proporcionalmente ao corpo, pelo escuro, três unhas em cada uma das patas e, ressaltava, a carne semelhante à de porco. É recorrente, em diversos autores, a visão dos animais meramente como caça, para alimentação, fato a que já me referi nas postagens anteriores.

Capivara pastando à margem de um lago

Compelido a viajar pela rota das monções em 1751, o Conde de Azambuja, D. Antônio Rolim, deixou anotada uma observação sobre a caça às margens do Tietê:
"De caça de pele neste rio só pacas e capivaras. As primeiras são do tamanho de um leitão, com os pés curtos, o pelo como de cão pardo-escuro. Das outras o feitio é de rato, principalmente o da cabeça; o pelo na aspereza é de porco, mas pardo; são do tamanho de um marrão, e o gosto não é bom; a paca sim é mui gostosa." (¹)
Os leitores podem recordar-se de que, em postagens anteriores desta série, outros viajantes relataram uma diversidade bem mais significativa de animais "caçáveis" às margens do mesmo Tietê. O que teria ocorrido em tão breve intervalo de tempo, fazendo com que os animais desaparecessem? Talvez seja possível aplicar também neste caso as palavras do Padre Ayres de Casal, ao referir-se à desaparição de aves chamadas guarás no Maranhão:
"As espingardas têm feito maior destruição nestes viventes em três séculos do que as taquaras dos indígenas em toda a antiguidade." (²)

(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, pp. 201 e 202.
(2) Corografia Brasílica, vol. 2, 1817, p. 263.


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domingo, 18 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 5): Os ferozes queixadas

"Com efeito da orla da selva rompia um bando de porcos-do-mato. Mais de cem desses animais selvagens, com a pupila chamejante, ouriçando as ruivas cerdas, e afiando os longos colmilhos nos queixais chocalhados pela sanha, trotavam em fila, e figuravam na relva da campina a verga combusta do imenso arco de algum tamoio gigante.
Assim avançam os ferozes queixadas, rompendo relvas, estraçalhando quanto encontram com os cutelos das presas, ou esmagando-o sob a úngula bissulca das cem patas cadentes que batem o chão. Se o inimigo resiste ao primeiro ímpeto do centro, ou se receiam lhes fuja, as pontas do arco se estorcem, e a vara fatal cinge o mísero, que tomba em pedaços, como a isca à flor de tanque piscoso."
                                                                                                                                        José de Alencar, Til

Semelhantes sob vários aspectos aos porcos-monteses da Europa, os queixadas ou porcos-do-mato (¹) logo atraíram a atenção dos colonizadores, que viam na abundância desses animais a garantia de caça apetitosa e farta. Isso, naturalmente, a despeito do perigo, pois esses porcos selvagens, percorrendo as matas em enormes manadas, eram capazes de aterrorizar até o mais indômito dentre os caçadores. Algo parecidos na forma, os simpáticos e, quase sempre pacíficos caititus, às vezes "pagavam o pato".

Queixada ou porco-do-mato

Mas, se os queixadas eram assim tão perigosos, como caçá-los? Frei Vicente do Salvador, ao descrever os ditos animais, deixou-nos um relato de qual era o procedimento empregado em sua captura:
"Há também muitos porcos-monteses; alguns como os javalis de Espanha, os quais andam em manadas, e se o caçador fere algum há logo de subir-se a alguma árvore, porque vendo eles que não podem chegar-lhe remetem todos ao ferido e aos outros que se pegou algum sangue, com tanta fereza que se não apartam até não deixarem três ou quatro mortos no campo, e então se vão em paz, e o caçador também com a caça." (²)
Ainda assim, leitor, se fosse possível (hipoteticamente, claro), fazer uma enquete entre os sertanistas que andavam a percorrer o território ainda ignoto do Brasil nos tempos coloniais, os porcos-do-mato figurariam, sem sombra de dúvidas, entre os grandes terrores que os assaltavam. Alguns relatos mais, que agora consideraremos, podem confirmar esta ideia.
No primeiro deles, é o próprio Frei Vicente do Salvador quem conta de um ataque a uma tropa de entradistas:
"Em a era do Senhor de 1578, em que Lourenço da Veiga governava este Estado, se ordenou em Pernambuco uma entrada para o sertão em que foi por capitão Francisco Barbosa da Silva em um caravelão até ao rio de São Francisco, e por ser a gente muita, e não caber na embarcação, foram setenta homens por terra, levando por seu cabo a Diogo de Crasto, que falava bem a língua da terra e havia já ido da Bahia a outras entradas.
Estes, havendo passado o rio Formoso, foram cometidos de um bando de porcos-monteses, com tanta fúria e rugido de dentes, que os pôs em pavor, mas como tinham as espingardas carregadas, descarregaram-nas neles, e os fizeram voltar, ficando sete mortos, que foram bons para a matalotagem." (³)
Outros relatos vêm de Teotônio José Juzarte, o sargento-mor que, em 1769, conduziu uma monção pelo Tietê afora. Ele mesmo lista os porcos-do-mato entre os grandes perigos que ameaçavam os monçoeiros:
"Há as onças, e tigres e as grandes manadas de porcos-de-mato que são bravíssimos, e de muito longe se ouve o estrépito que fazem com os dentes, de tudo isto se tem grande cuidado durante a noite." (⁴)
E, para confirmarmos que há dia da caça e dia do caçador, outros dois breves trechos do Diário da Navegação anotado por Juzarte, sendo o segundo deles um exemplo no mínimo exótico dos tratamentos dispensados aos doentes no Período Colonial. Sem mais delongas, vamos a eles:
"... e saíram muitos homens a caçar por aqueles matos onde se perdeu um soldado [...]; ... sendo já oito horas da noite ouviram que o soldado gritava, acudindo para aquela parte deram com ele trepado sobre uma árvore sem saber em que parte estava, e disposto a ficar a morrer naquele sertão; contou que o motivo de se trepar naquela árvore fora um grande número de porcos-do-mato que com violenta carreira se encaminhavam para ele, aos quais seguia e perseguia uma onça de extraordinária grandeza, que à vista disto se salvou em cima daquela árvore para passar ali a noite até o dia seguinte para então ver se acertava com o lugar aonde ficavam as embarcações [...]." (⁵)
"... seguindo encontramos uma quantidade de porcos-do-mato que com os dentes faziam grande bulha, embicamos em terra, e logo saltaram alguns caçadores, e com efeito mataram três, os quais se repartiram pelos doentes..." (⁶)
Sim, sua leitura está correta: "os quais se repartiram pelos doentes"! Sucede que a comida escasseava entre os monçoeiros e, ao capturarem alguma caça, reservavam-na para os que estavam mais debilitados.

(1) A lista de animais que aparece na Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal, mencionada na primeira postagem desta série, refere apenas a existência de porcos-monteses no Brasil.
(2) História do Brasil.
(3) Ibid.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 236.
(5) Ibid., p. 244.
(6) Ibid., p. 271.


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