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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Ovelhas devoradoras de homens

A relação entre o cercamento dos campos e a Revolução Industrial inglesa


Humanos devoram ovelhas (*). Fato curioso é que, na mitologia de vários povos da Antiguidade, era corrente que os homens, de início vegetarianos, haviam, a partir de certo momento, se tornado carnívoros. Entre os antigos gregos alguns pensavam que os humanos, que eram frugívoros, só experimentaram carne depois que Prometeu entregou a eles o fogo - entende-se facilmente a relação de causalidade. Seria, desde então, que animais começaram a ser oferecidos em sacrifício aos deuses... E, se era permitido aos deuses, por que não aos homens?
Mas pode ser pior. Houve quem atribuísse a origem dos hábitos carnívoros à deusa Deméter (Ceres, entre os romanos), aquela, que, segundo se supunha, amparava as searas. A contradição é apenas aparente: tendo a deusa cultivado uma bela plantação de cereais, que prometia farta colheita, um suíno teve a ideia de lá entrar e estragar tudo. Furiosa, Deméter cortou o fio da existência ao pobre animal, e, por conseguinte, condenou à morte todos os demais porcos, que passaram a ser criados apenas para morrer. Destino inglório, esse!
Bem, meus leitores, as lendas desse tipo são muitas, mas é melhor abandonar o assunto dos humanos carnívoros e passar ao caso das ovelhas devoradoras de homens. Pois saibam que foi Thomas Morus, em sua Utopia, quem, no Século XVI, acusou as ovelhas inglesas de antropofagia. Não que as meigas criaturas lanígeras houvessem, de súbito, adotado mudanças em seus hábitos alimentares, e nem mesmo eram elas as culpadas. O problema começara (suprema inovação!) com os homens. 
Expliquemos.
A ordem rural que prevalecera na Inglaterra da Idade Média andava a ruir. Criar carneiros tornou-se lucrativo, de modo que os proprietários de terras, pondo em uso uma série de expedientes, trataram de expulsar os camponeses, e, em pouco tempo, nuvens de ovinos eram vistas cobrindo os campos outrora cultivados. A lavoura da época requeria muita mão de obra; para a criação de carneiros, poucos pastores eram necessários.
Esse fenômeno, que ficou conhecido como "cercamento dos campos", desencadeou uma série de consequências, dentre as quais:
  • Os camponeses expulsos, que só sabiam trabalhar na agricultura, não encontravam outra ocupação;
  • Houve uma elevação considerável na criminalidade e na mendicância;
  • Leis severas e enforcamentos em série não eram suficientes para debelar a incidência de crimes;
  • Declinou a produção de alimentos, havendo, portanto, uma elevação nos preços dos que estavam disponíveis;
  • Mesmo que a produção de lã não fosse um monopólio legalmente reconhecido, os produtores, controlando o mercado, passaram a regular os preços, mantendo-os artificialmente elevados, de modo que os tecidos de lã não mais estavam ao alcance dos pobres.
Vejam então, leitores, que a acusação de "antropofagia", com que Thomas Morus invectivou as ovelhas, melhor caberia aos proprietários de terras - a nobreza e o clero, como o próprio Morus explicou. Exagero ou não, segundo esse autor, depois que os camponeses eram expulsos, nada mais ficava em pé entre as construções das aldeias, a não ser as igrejas. Eram usadas como estábulos.
O tempo da Revolução Industrial estava ainda longe, mas entende-se que o cercamento dos campos foi um dentre muitos fatores que proporcionaram condições para o surgimento da atividade fabril, na qual o ramo da tecelagem alcançou destaque. A enorme produção de lã assegurava um suprimento contínuo de matéria-prima para as fábricas. A configuração urbana mudou drasticamente, com o aparecimento de vastos e miseráveis subúrbios de onde provinha a mão de obra. Em quantidade e qualidade, tecidos ingleses mostraram-se superiores e, gradualmente, conquistaram mercados, mesmo em terras distantes. O que aconteceu na Inglaterra influenciou o mundo.

(*) Nem todos os seres humanos devoram ovelhas; a blogueira, por exemplo, tem horror dessa carnificina.


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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Utopia (não muito utópica) de Thomas Morus

Utopia, hoje, é uma palavra geralmente usada para descrever um sonho ou projeto impossível ou, pelo menos, muito difícil de ser concretizado. A palavra surgiu, porém, como título de uma obra que falava de uma ilha imaginária, na qual existia uma civilização ideal. Apareceu quando era, ainda, a época dos grandes descobrimentos, e a possibilidade da existência de civilizações avançadas e até então desconhecidas passava pela cabeça de muitos europeus, mais ou menos como se discute, agora, se há vida inteligente em planetas distantes.
Ocorre, entretanto, que a "civilização perfeita" da ficção política escrita no Século XVI por Sir Thomas Morus, tinha muitos dos valores típicos do tempo em que viveu seu autor, ou mesmo elementos bem conhecidos de civilizações do passado, e, sob esse aspecto, não poderia ser classificada como um arroubo de originalidade. Querem ver, meus leitores?
  • À semelhança de alguns povos da Antiguidade, como os hebreus e os gregos de Esparta e Atenas, por exemplo, os utopianos tinham um legislador-fundador, cujo nome era Utopus e que, depois de civilizar a população selvagem da ilha, formulara a legislação que a regia;
  • Um príncipe, com mandato vitalício, era o governante supremo da Utopia, o que comprova que Morus não conseguia caminhar muito longe da ideia de monarquia então corrente na Europa;
  • Para auxiliar o príncipe vitalício havia um conselho de anciãos ou senado (lembram-se do senado romano?);
  • Questões de interesse público somente podiam ser debatidas no âmbito do senado e/ou das assembleias populares, atribuindo-se pena de morte para os desobedientes - apesar de supostamente impedir que decisões fossem tomadas às escondidas, pode-se questionar que havia, afinal, um tipo de censura ou restrição à liberdade de expressão dos cidadãos comuns da Utopia, cuja finalidade prática era evitar qualquer questionamento franco das regras estabelecidas;
  • Com exceção da agricultura, praticada tanto por homens como por mulheres, os demais ofícios eram divididos por sexo;
  • Filhos, como regra, aprendiam o ofício de seus pais (como nas corporações de ofício medievais), embora isso não fosse estritamente obrigatório;
  • O pai era a maior autoridade da família e cada grande grupo familiar (a que nós talvez déssemos o nome de clã) era regido pelo homem mais idoso, ou seja, pelo patriarca;
  • Ao casar-se, a moça é que ia viver com a família de seu marido, jamais o contrário, mais ou menos como acontecia na Grécia e Roma antigas;
  • Era permitido que os maridos castigassem as respectivas mulheres e que os pais castigassem os filhos;
  • Durante as refeições, as mulheres deviam servir a seus maridos, assim como os filhos estavam obrigados a servir a seus pais;
  • Trabalhos pesados na cozinha eram feitos por escravos, mas cozinhar e servir às mesas eram tarefas para as mulheres;
  • O casamento era, como regra geral, considerado indissolúvel, embora em casos graves de incompatibilidade o senado pudesse autorizar uma separação;
  • Na Utopia, a escravidão era admitida: os escravos eram, entre outros, prisioneiros de guerra, pessoas que haviam cometido adultério e criminosos sentenciados (como nas antigas penas de galés);
  • Condenados à escravidão eram, em caso de revolta, punidos com a morte;
  • Com o objetivo de encontrar uma solução para o excedente populacional que a ilha não poderia comportar, os utopianos, de modo análogo aos antigos gregos, fundavam colônias;
  • Ao fundar uma nova colônia em um lugar qualquer, os utopianos, se encontrassem ali habitantes, usavam a força para expulsá-los, e a isso consideravam uma guerra justa;
  • Em caso de guerra, os habitantes da Utopia costumavam contratar mercenários estrangeiros que fossem ao combate, de preferência a arriscar a pele dos cidadãos durante a luta;
  • Utopianos tinham inquietações filosóficas muito semelhantes àquelas que povoavam a mente de estudiosos europeus, quer do Medievo, quer do Renascimento.
Creio que, para nosso propósito, esta lista já é suficiente.
A que conclusão chegamos, leitores? Mesmo a Utopia utopicamente original não conseguiu fugir às amarras de sua época. Seu autor, um crítico mordaz das injustiças sociais que permeavam a Inglaterra de seu tempo, não teve destino muito feliz: Thomas Morus, no contexto do terremoto político-religioso que sacudiu a Europa e, em seu caso particular, a Inglaterra do Século XVI, acabou condenado à morte e foi decapitado em 1535. Sua Utopia, porém, se não foi a primeira fantasia de uma sociedade ideal a ser composta, veio a ser a mais popular, pelo menos no nome. 
Popularidade, porém, não é tudo. A despeito de sua sincera preocupação com questões relacionadas à justiça social, a Utopia (a obra, não a ilha) fazia a defesa de um controle tão estrito dos indivíduos que, sob a capa da igualdade, raiava à opressão. Que dizer de um país, ainda que hipotético, no qual toda a vida do cidadão era regulada por leis, desde a hora em que acordava até o momento em que ia dormir, assim como quando e quantas eram as refeições diárias que podiam ser feitas, qual era o tempo de trabalho, qual o tempo de lazer e como podia ser gasto, que atividade profissional devia ser exercida, quando e com quem se casaria e que posição ocuparia dentro de seu grupo familiar? Havia mais: Se o cidadão quisesse fazer uma viagem, somente poderia empreendê-la com o consentimento dos governantes, que predeterminavam a data de regresso e estipulavam que, na localidade a ser visitada, devia, enquanto lá estivesse, trabalhar com os que fossem da mesma profissão. 
Parece asfixiante, leitores? Nesse sentido, a Utopia imaginada e descrita por Thomas Morus estava mais para arcabouço de um Estado totalitário do que para fundamento de uma sociedade livre.


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