quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Crianças notáveis

"O menino é pai do homem", escreveu Machado de Assis. (¹). Será, mesmo? 
A maioria dos cronistas do passado não ousaria discordar, tal era, entre eles, a obsessão em encontrar, na infância de grandes personagens, acontecimentos que prenunciavam, para bem e/ou para mal, a suposta grandeza que viriam a manifestar quando adultos. Rômulo e Remo, todo mundo sabe, teriam sido amamentados por uma loba; tolice que seja, houve quem afirmasse que Ciro, rei da Pérsia, tivera uma cachorra como ama; da rainha Semíramis, da Mesopotâmia, dizia-se que fora alimentada por pombas, até que, sendo encontrada por um pastor, fora criada em sua família, e quanto a Gilgamés, o herói do famoso épico também da Mesopotâmia, teria sido jogado do alto de uma torre logo que nasceu, para que não cumprisse a profecia de que tomaria o trono de seu avô. Contudo, segundo a lenda, foi salvo por uma águia que o segurou firmemente antes que chegasse ao chão e, levado a um belo jardim, foi criado por um camponês (²). Oh!!!
Não só do sobrenatural se alimentavam os biógrafos. Buscava-se na infância dos grandes aqueles episódios não de todo impossíveis, que prenunciassem eventos futuros. Falando de Catilina, o da famosa conjuração, Salústio afirmou: "Lúcio Catilina, de nobre nascimento, era forte de alma e corpo, porém de índole má e depravada. Desde a adolescência gostava de brigas, assassinatos, pilhagens e discórdias civis" (³). Neste caso, a má índole juvenil seria explicação para a tentativa de tomada violenta do poder em Roma, subvertendo a autoridade senatorial. Numa Pompílio, o segundo dentre os reis lendários de Roma, teria nascido no mesmo dia da fundação da cidade (⁴), um claro indício da glória a que era destinado. Parece que ninguém se lembrou de que outros podem ter nascido no mesmo dia, mas nunca chegaram à realeza em Roma.
Bem mais perto de nós, no Século XVIII, o padre André de Barros, biógrafo de Antônio Vieira, jesuíta como ele, contou, procurando ilustrar as espertezas do menino que, quando homem feito, seria hábil no manejo das palavras, quer faladas, quer escritas:
"Nos tenros anos da puerícia [...] reluziam nele algumas vivezas, que como faíscas rebentavam de alguma interna mina de fogo e de luz. Vendo-o um cônego no adro daquela antiga sé lhe disse: De quem sois, meu menino? Respondeu-lhe: Sou de V. m. (⁵) pois me chama seu. Refere-se mais, que perguntando-lhe outra pessoa, donde era, lhe respondera: V. m não me conhece. Eu (tornou o curioso) conheço a metade do mundo. Pois eu, senhor (respondeu o menino), sou da outra metade. Esta a fama, que depois de tantos anos não pôde ser averiguada; mas ficou na memória dos homens, como aquele rastro de luz, que deixa a estrela, que vai correndo." (⁶)
Fatos, em alguns casos, lendas piedosas (ou nem tanto) em outros, narrativas encomendadas, exageradas e, eventualmente, muito bem-pagas, ocupavam o tempo e justificavam a existência nos palácios e templos de criaturas capazes de escrever - escribas e cronistas - e, por isso mesmo, responsáveis pelos registros que garantiram que a grandeza atribuída aos notáveis de seu tempo atravessasse os séculos e chegasse aos nossos dias. Para nossa diversão, é claro, conforme vocês acabaram de ver.

(1) ASSIS, Joaquim M. Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
(2) Chegam a ser desconcertantes as semelhanças, não na superfície, mas na essência, que podem ser encontradas nessas histórias. Não se pode descartar por completo um elemento de totemismo nos mitos, devido à presença de animais "protetores" que salvavam bebês humanos predestinados a grandes feitos.
(3) Catilinae coniuratio.  O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Cf. PLUTARCO, Vitae parallelae
(5) V. m.: vossa mercê.
(6) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 5.


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