sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Ratos no cardápio

De que se alimentavam os marinheiros da primeira viagem de circum-navegação quando faltava comida a bordo


A primeira viagem conhecida de circum-navegação, empreendida por uma expedição espanhola composta por cinco navios, mas comandada, curiosamente, por Fernão de Magalhães, que era português, saiu de Sevilha em 10 de agosto de 1519, uma segunda-feira, e deixou Sanlúcar em 20 de setembro do mesmo ano (¹). Pode-se imaginar que os tripulantes talvez estivessem eufóricos, pela possibilidade de empreender uma viagem nunca antes realizada, na qual esperavam adquirir fama e muita riqueza. E quanto aos que ficavam? Podemos apenas supor o sentimento misto de orgulho e de tristeza, já que a possibilidade de uma separação definitiva de parentes e amigos era real. 
A viagem transcorreu dentro do previsto até que, já em 1520, tiveram de enfrentar o inverno extremo no sul do Continente Americano. É evidente que essa foi uma expedição de alto risco. Supunha-se a existência de um "mar austral", no qual haveria uma passagem para o "outro lado do mundo"; tiveram a sorte de, em meio às buscas, topar com a passagem à qual hoje chamamos Estreito de Magalhães, mas a distância, depois de deixar a costa da América do Sul, até chegar às "ilhas das especiarias", as Molucas, era consideravelmente maior do que a calculada pelo comandante, com base em escassas informações e cartas de marear que vira. Por isso, e pelas condições de navegação da época, tornou-se impossível obter suprimentos em quantidade e qualidade suficientes para tal navegação. 
Sabe-se que a saída do Estreito aconteceu em 28 de novembro de 1520. Estavam, agora, diante do oceano a que chamaram Pacífico, porque assim parecia. Aí tiveram pela frente nada menos que três meses e vinte dias sem provar qualquer alimento fresco, e desnecessário é dizer que o escorbuto grassava entre a marujada, fazendo a tripulação inicial, de mais de duzentos homens, ir-se, gradualmente, reduzindo. De acordo com Antonio Pigafetta, um italiano que, a bordo da embarcação em que estava Magalhães, escreveu um registro da viagem, era esta a situação quanto à comida, capaz de dar calafrios, até hoje, em quem lê:
"O biscoito que comíamos já não se parecia pão, mas um pó misturado com bichos [...] e que, por estar cheio de urina de rato, tinha um cheiro insuportável. [...] Chegamos ao extremo, para não morrer de fome, de comer pedaços do couro que recobria o mastro maior [...]. Este couro, devido à exposição à água [salgada], ao sol e ao vento, estava tão enrijecido que, antes de ser cozido e comido, devia ficar por quatro ou cinco dias na água do mar, para tornar-se mais macio." (²)
Não foi só. Finalmente, no dizer de Pigafetta, "nossa alimentação se reduziu à serragem de madeira, porque nem ratos, tão asquerosos, havia mais [...]."
Depois disso, encontraram ilhas, até então desconhecidas, e, assim, ao menos puderam trocar as mercadorias que traziam (³) por algum alimento. 
Não foi, contudo, o fim dos problemas. Magalhães, envolvendo-se em um conflito tribal entre ilhéus, morreu em decorrência de ferimentos recebidos em Cebu. Agora, a preocupação era: como voltar à Espanha? 
O comando recaiu em Sebastián Elcano, a quem, por estranho que pareça, Pigafetta não fez qualquer referência. Conseguiram chegar às Molucas, fizeram o comércio que esperavam, abarrotaram os dois navios que ainda tinham, mas, na hora da partida, perceberam que um deles não poderia viajar, tão avariado estava. Portanto, apenas o navio Victoria empreendeu a viagem de volta, levando cartas dos tripulantes que ficavam nas Molucas, à espera de uma oportunidade para retornar à terra de origem. Daí por diante, a viagem, como se esperava, foi dificílima. Não foram poucas as vezes em que marinheiros pensaram na possibilidade da permanência em qualquer lugar em que se pudesse viver, tal era o sofrimento no mar. 
Porém...
Após tantas desgraças, o Victoria chegou a Sanlúcar em 6 de setembro de 1522, um sábado, com apenas dezoito homens, entre os quais o senhor Pigafetta, a quem devemos tantas informações (⁴). Dois dias mais tarde estavam em Sevilha, onde um tiro de canhão, vindo do navio que à custa concluía a viagem, anunciou o fim de uma das mais loucas expedições já realizadas. 
O que terá acontecido nessa ocasião? Gente correndo ao porto, pedindo notícias de parentes e amigos, mulheres ou filhos chorando pelos que não haviam voltado, que eram quase todos... Sobreviventes tinham a oportunidade perfeita para contar o que haviam vivido, com o exagero que a distância permitia. Era a rotina a cada navio que retornava após uma longa viagem. 
Ao falar de animais exóticos vistos nas ilhas por onde andaram, Pigafetta teve o cuidado de mencionar terem visto "morcegos tão grandes quanto águias". Ora, mesmo admitindo que fossem como águias das espécies menores, essa história devia cheirar a fake news, pelo menos quanto ao tamanho do mamífero voador. Continuava Pigafetta: "a um matamos e comemos, e nos pareceu ter sabor de frango". Tiveram sorte, portanto, em não arranjar, no começo da terceira década do Século XVI, um problema do Século XXI.

(1) Lembrem-se, leitores, de que as datas são todas anteriores à introdução do Calendário Gregoriano.  
(2) Os trechos citados do Diário de Pigafetta foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) A intenção era chegar às "ilhas das especiarias" e lá comprar cravo e outros condimentos que pudessem ser revendidos com alto lucro na Europa. 
(4) E algumas desinformações. Seu diário está repleto de notícias fantasiosas sobre humanos gigantes e pigmeus, além de animais estranhíssimos, cuja existência jamais foi comprovada. 


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