Os filhos das escravas eram, legalmente, também escravos (²), a menos que fossem libertados pelo proprietário da mãe. Era costume que, a contar da data do parto, uma escrava ficasse três dias sem trabalhar. Depois, voltava às suas tarefas rotineiras.
A maioria dos senhores não tinha qualquer constrangimento em exigir trabalho dos pequenos escravos, tão logo fossem considerados capazes de fazer alguma coisa. Na prática, meninos e meninas de seis, sete anos de idade, eram já postos a trabalhar.
É verdade que tal desgraça não era duvidoso privilégio apenas de um país no qual vigorava o escravismo. Basta lembrar que na Inglaterra da Revolução Industrial era absolutamente comum que crianças trabalhassem na limpeza de chaminés (³), nos apertadíssimos túneis periféricos das minas de carvão, nas tecelagens e em muitos outros ramos de ocupação. Lá, ainda que as crianças fossem legalmente de condição livre, eram forçadas a trabalho penoso, fisicamente degradante e por longas jornadas (⁴), em decorrência da pobreza extrema em que viviam, como parte da população operária residente nos bairros miseráveis das grandes cidades industriais.
Mas retornemos, leitores, à questão das crianças escravizadas no Brasil. Dois exemplos serão úteis para quem desejar uma visualização do que ocorria. O segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, que fazia experiências com o cultivo de chá em suas terras, disse: "Tenho adotado o método de trazerem as folhas misturadas e, neste serviço, emprego negros, rapazes, mulheres e até crianças de seis anos para cima, que entre os outros também fazem algum serviço." (⁵) Esse relato, é bom mencionar, foi publicado pela primeira vez na década de quarenta do Século XIX.
Retrocedendo no tempo, temos um testemunho pungente, obra de Saint-Hilaire, da ocasião em que esse naturalista francês fazia suas andanças pelo Rio Grande do Sul, pouco antes da Independência. A coisa acontecia na casa de um charqueador de certa importância:
"Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a ir prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão. Quando anoitece, o sono o domina, e quando não há ninguém na sala, põe-se de joelhos para poder dormir; não é esta casa a única onde há este desumano hábito de se ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se, quando necessário." (⁶)
"Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a ir prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão. Quando anoitece, o sono o domina, e quando não há ninguém na sala, põe-se de joelhos para poder dormir; não é esta casa a única onde há este desumano hábito de se ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se, quando necessário." (⁶)
Sim, leitores, é de causar espanto o entorpecimento moral que a escravidão produzia. Quem, no entanto, saberá dizer quantas misérias sociais são toleradas mesmo hoje, sem que uma só palavra de desaprovação seja dita?
Escrava vendedora de frutas carregando seu bebê (⁷) |
(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Sobre a Lei do Ventre Livre e a libertação dos filhos de escravas, veja, também neste blog: "Quem Foi Libertado Pela Lei do Ventre Livre?"
(3) Eram consideradas perfeitas para a tarefa, justamente porque eram pequenas.
(4) Seis dias por semana, 12 horas por dia, e mesmo mais, em alguns casos.
(5) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 147 e 148.
(6) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 119 e 120.
(7) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
Veja também:
Sem dúvida, a escravatura persiste no século XXI, mesmo entre crianças. Leu essa notícia? http://www.huffingtonpost.com/amanda-gregory/chocolate-and-child-slave_b_4181089.html.
ResponderExcluirFiquei horrorizada e eliminei certas marcas da minha lista de compras.
Fantástico ainda que triste post.
Abraço
Ruthia d'O Berço do Mundo
P.S. Essa imagem de Debret ocupa uma parede inteira no Museu da Escravatura em Angola
O post pode ser triste, mas está aqui justamente porque, mesmo em nosso século, há trabalho escravo ou análogo à escravidão em muitos lugares. Nem mesmo as crianças escapam da exploração.
ExcluirLi a notícia do link. Já faz tempo que deixei de comprar uma série de produtos (não apenas chocolate) de várias marcas, por questões relacionadas à exploração do trabalho e por atitudes ambientalmente irresponsáveis da parte dos fabricantes, mas vejo que é quase impossível navegar em meio a um verdadeiro mar de falta de ética, no qual o lucro é tudo o que interessa.
Compreende-se que a gravura de Debret esteja no Museu da Escravatura: sem uma única palavra, ela sintetiza todo o horror da escravidão.
Sempre aprendo e sigo me reinformando sobre assuntos
ResponderExcluirtão importante como estes
que tenho o prazer de ler
aqui.
Adoro vir aqui sempre.
Grata por nos brindar.
Bjins
Catiaho Alc
Obrigada pela visita. Este assunto da escravização de crianças é muito desagradável, não é? Ainda assim, é preciso falar nele, já que a exploração de um ser humano por outro nunca desaparece, apenas muda de forma (infelizmente).
ExcluirTenha uma ótima tarde. Grande abraço...