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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O Tratado de Comércio e Navegação de 1810

Pergunta: O que aconteceu em 19 de fevereiro de 1810? 
Bem, se levarmos em consideração o mundo todo, deve ter acontecido muita coisa, mas, por agora, a nós interessa o fato de que, nesse dia, Portugal e Grã-Bretanha firmaram o Tratado de Comércio e Navegação. Não, leitores, não esperava que se lembrassem disso. Afinal, nenhum de nós viveu naquele tempo...
Estudantes brasileiros aprendem que, pelo Tratado de Comércio e Navegação, produtos ingleses, quando entrassem nos portos do Brasil, pagariam direitos de 15%, o que é uma verdade, mas o conhecimento escolar não costuma ir muito além disso. Faz-se, assim, uma grande injustiça, porque o Tratado de Comércio e Navegação foi muito mais do que um acordo de tarifas alfandegárias.
Todo o documento era fundamentado no princípio da mais estrita reciprocidade entre as partes - tem-se  um exemplo no  Artigo V: "[...] Os navios e embarcações portuguesas gozarão do mesmo favor [...] nos domínios de sua majestade britânica que se conceder aos navios e embarcações britânicas nos domínios de sua alteza real o príncipe-regente de Portugal, e vice-versa." Expressões semelhantes perpassam todo o texto. Observem os leitores que o Tratado era válido em todos os domínios dos dois monarcas, e não só no Brasil, como ainda há quem imagine. No caso de Portugal, abrangia, por suposto, não apenas o território português na Europa e o Brasil, mas também as colônias na Ásia e na África.
Mas vamos em frente, com dois outros aspectos pouco conhecidos. 
Pelo Tratado, ficava assegurada a liberdade de consciência (com algumas restrições) aos súditos ingleses que vivessem nos domínios de Portugal, valendo o mesmo para os portugueses que residissem em domínios da Grã-Bretanha. Não sendo um problema na Inglaterra, isso era uma grande novidade no Brasil, e na Constituição de 1824, a primeira do Brasil independente, o princípio da tolerância religiosa seria estendido a todos os residentes no País, ainda que, na mesma Carta, fosse definido o catolicismo como religião oficial.
Outro ponto interessante é que Portugal e Grã-Bretanha assumiam o compromisso de não dar asilo a criminosos da outra parte que estivessem foragidos, nem tampouco para desertores, conforme o Artigo XIV: "[...] As pessoas culpadas de alta traição, de falsidade e de outros crimes de uma natureza odiosa, dentro dos domínios de qualquer das Altas Partes Contratantes, não serão admitidas e nem receberão proteção nos domínios da outra. E que nenhuma das Altas Partes Contratantes receberá de propósito e deliberadamente nos seus Estados, e entreterá ao seu serviço, pessoas que forem vassalos da outra potência, que desertarem do serviço militar dela, quer de mar, quer de terra [...]."
Sobre as questões econômicas, que constituíam o cerne do Tratado, cabe dizer ainda que:
  • Além da já mencionada tarifa aduaneira de 15%, ficava entendido que Portugal podia criar impostos mais pesados sobre produtos coloniais britânicos (como açúcar e café), que fizessem concorrência à produção colonial lusitana, e, reciprocamente, a Grã-Bretanha podia taxar acima dos 15% tudo o que viesse das possessões portuguesas e fizesse concorrência à sua própria produção colonial;
  • Seriam adotadas medidas para combater a pirataria e o saque de embarcações que sofressem naufrágio;
  • O porto de Santa Catarina, no Brasil, e o porto de Goa, seriam considerados portos francos;
  • Não haveria qualquer alteração no Tratado de Panos e Vinhos (ou Tratado de Methuen), celebrado em 1703.
Depois de todas essas considerações, não duvido de que alguns dos leitores estejam intrigados com o aspecto negativo com que o Tratado de Comércio e Navegação sempre é referido. Se havia reciprocidade, onde estaria o problema?
É fato que havia uma equivalência relativa de obrigações, mas toda a questão muda de aspecto quando se vê que, em 1810, Portugal e Grã-Bretanha eram potências de capacidade econômica e política completamente diferentes, e não pode haver igualdade quando as forças são tão desiguais. À vista disso, a balança, como é óbvio, era favorável a um dos lados, que não era o de Portugal e, com ele, o do Brasil.


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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil

O Brasil, ao contrário do que aconteceu na América Espanhola, nunca teve um tribunal fixo do Santo Ofício da Inquisição. Seria perda de tempo: o vasto território colonial era escassamente habitado, e cada pequeno núcleo de colonos ficava, em geral, muito longe de qualquer outro. Por isso, a presença do Santo Ofício em terras do Brasil aconteceu através das chamadas "Visitações" que, de um modo muito simples, podem ser descritas como uma versão ambulante do Tribunal, com uma estrutura mínima de funcionários: bastava haver um visitador, um notário e um meirinho. Quando comparadas à complexa estrutura inquisitorial estabelecida em Portugal e Espanha, as Visitações eram o que havia de mais modesto.
Ora, a primeira Visitação, tendo à frente o visitador Heitor Furtado de Mendonça, principiou na Bahia, na época capital do Brasil português, com a publicação dos chamados Editos da Fé e da Graça em 28 de julho de 1591. A população da Cidade do Salvador e adjacências, reunida na Sé, em cerimônia religiosa que se reputava de comparecimento obrigatório, foi informada de que tinha trinta dias de prazo para confissões e acusações. Mandava-se também que todos os livros existentes na cidade e/ou listas de livros das bibliotecas (!) fossem apresentados ao inquisidor, que pretendia verificar se não havia algum que constasse no Index Librorum Prohibitorum...
Para quem vive no Século XXI isso tudo pode parecer um grande absurdo; na época, tinha início uma temporada de medo para a população. As pessoas corriam a confessar mesmo coisas irrisórias, temendo que, antes disso, alguém fizesse uma denúncia do suposto crime contra a fé. Seria longo demais expor aqui toda a lista de confissões, mas vale a pena mencionar alguns casos, para que os leitores tenham uma ideia nítida de coisas que ocorriam no Brasil no final do Século XVI:
  • O primeiro a aparecer diante do visitador foi um padre, que confessou ter praticado "tocamentos desonestos" com umas quarenta pessoas (esse indivíduo foi citado em muitas outras confissões);
  • Várias pessoas apareceram para confessar ou acusar alguém de "práticas judaizantes", tais como não usar banha de porco ou mudar a roupa de cama e mesmo tomar banho antes do sábado;
  • Uma pessoa confessou ter dito que "não devia nada a ninguém, nem a Deus";
  • Um mestre de açúcar confessou que, sendo casado na Madeira, viera ao Brasil e casara de novo;
  • Uma mulher declarou ter comido abacaxi antes de receber a comunhão;
  • Um estudante de dezessete anos confessou ter-se envolvido com o padre que fizera a primeira confissão (o visitador perguntou ao rapaz se mais alguém sabia do caso);
  • Um homem confessou ter dito que não acreditava no Evangelho de S. João;
  • Um padre mameluco confessou ter tido envolvimento sexual com duas escravas de seis ou sete anos [sic!!!];
  • Duas mulheres confessaram relacionamento homoafetivo;
  • Um homem que fora prisioneiro de ingleses confessou que, "por medo", havia presenciado serviços religiosos protestantes;
  • Uma pessoa alegou que "por curiosidade", entrara em uma sinagoga;
  • Um estudante confessou que ouvira dizer e repetira que "dormir homem com mulher não era pecado";
  • Um rapaz confessou que tivera práticas sexuais com três pessoas: um seu irmão, um mameluco e um homem que iria ser ordenado ao sacerdócio;
  • Várias pessoas confessaram blasfêmias, assim como práticas rotuladas como feitiçaria.
Essas confissões aparecem nos registros da Visitação a Salvador e adjacências. O visitador e seus ajudantes foram, posteriormente, ao Recôncavo Baiano, e vale dizer que, em linhas gerais, as confissões versaram lá sobre os mesmos temas. Terríveis tempos, esses, quando, por medo de prisão, tortura e mesmo de uma morte cruel, as pessoas corriam a revelar, diante de um burocrata da Igreja a quem se conferiam poderes quase ilimitados, assuntos que, em sua maioria, não deveriam sair dos limites da vida privada.


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