terça-feira, 31 de agosto de 2021

Novas regras para a Inquisição em 1774

O Século XVIII é chamado "Século das Luzes" devido à enorme influência exercida pelo Iluminismo, em suas múltiplas facetas. Na política, velhas ideias absolutistas, ainda que não varridas de todo (¹), ao menos foram disfarçadas, fazendo com que algumas monarquias ganhassem um aspecto mais aceitável, e escondendo, atrás de cortinas de modernidade, as teias de aranha ideológicas que andavam, há séculos, tão confortáveis no poder. Nesse cenário, o que se faria com a Inquisição? Deveria ser mantida? Seria possível compatibilizá-la com mudanças que pareciam inevitáveis?
Em Portugal e, portanto, naquilo que diretamente interessava ao Brasil, o inquisidor-geral, Cardeal da Cunha, propôs um novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, que entrou em vigor em setembro de 1774, sob os auspícios do Marquês de Pombal e do rei D. José I. Toda a responsabilidade pelos sangrentos autos da fé do passado foi lançada sobre os jesuítas - lembrem-se, leitores, de que a Companhia de Jesus, depois de expulsa de Portugal e seus domínios, foi extinta em 1773 (²). "[...] não houve estabelecimento útil nestes Reinos [...] que a pravidade jesuítica não deturpasse, aniquilasse, reduzisse aos miseráveis termos de os fazerem compatíveis com as máximas do seu despotismo [...]", afirmou o Cardeal da Cunha, entendendo que o Tribunal da Inquisição deveria ter status de tribunal régio e não simplesmente de tribunal eclesiástico. Consequentemente, estaria, em última instância, sob a autoridade do monarca reinante em Portugal. Quem iria supor que o rei pensaria mal dessa ideia?
Na prática, o novo Regimento abolia a tortura, com apenas uma exceção, "por ter mostrado a experiência que sendo a fragilidade humana inferior à constância que seria necessária para tolerar as dores dos tormentos, vêm os atormentados a confessar, por se livrarem delas, o que nunca fizeram, nem ainda imaginaram". Contudo, no Título II, § 3, havia esta instrução: "Porém se os réus forem heresiarcas ou dogmatistas, e constar terem disseminado erros e feito sequazes deles, se os não confessarem e as pessoas que com eles contaminaram; ou confessarem, ocultando algumas das ditas pessoas, serão postos a tormento proporcionado à qualidade da prova e dos indícios, que contra eles houver, pelo muito que importa arrancar de entre os fiéis tão venenosas e pestíferas raízes." Não se admitia, portanto, qualquer tolerância com ensinos ou ideias que contrariassem a doutrina oficial da Igreja. 
É curioso, até bizarro, o que se mandava em relação a acusados de bruxaria, feitiçaria e práticas congêneres, tão investigadas e cruelmente punidas pela Inquisição nos séculos precedentes. O novo Regimento dava a entender que, ou essas práticas eram fruto apenas de superstições e ignorância, ou resultavam de fenômenos ainda não devidamente explicados pela ciência: "Ou foram as referidas invenções miseráveis ideias de outras pessoas pobres e mendicantes, as quais buscavam recurso nas superstições de que fizeram uso para matarem a fome sem fatigarem o corpo com trabalho [...]; ou foram produtos naturais dos novos descobrimentos e das antes desconhecidas operações da física experimental, da química e da botânica, ou foram fenômenos das paixões histéricas e das intemperadas imaginações do sexo feminino [sic!!!!!!]." 
Seria razoável supor, então, que a Inquisição deixasse em paz os adeptos de superstições? Nada disso! Réus dessas coisas seriam chamados ao Santo Ofício e deveriam admitir que tudo o que faziam não passava de "fingimentos e imposturas" e, como suas práticas eram condenadas pela Igreja, podiam receber uma série de penalidades, incluindo açoites e degredo. Nada de fogueira, porém. 
E se algum réu insistisse que, de fato, tinha poderes mágicos? Mandava o Regimento, no Título XI, § 4: "Que os réus que se acharem nos referidos casos, sejam definitivamente julgados por loucos, sem necessidade de outra prova ou exame; que sejam como tais remetidos ao Hospício Real de Todos os Santos; que nele fiquem reclusos nos cárceres dos doidos, enquanto o Conselho Geral não mandar o contrário; e que nos mesmos cárceres sejam tratados pelos enfermeiros deles, como o costumam ser os outros doentes dessa enfermidade, frenéticos ou maníacos, conforme o indicarem os sintomas de cada um dos referidos loucos." 
Estariam os inquisidores ficando bonzinhos, estaria o Tribunal do Santo Ofício ficando menos malvado ou até simpático? 
Não se iludam, leitores. Os tempos eram outros, o Absolutismo, sob o influxo das ideias iluministas, corria sério perigo, e era preciso mudar, para evitar que coroas caíssem das cabeças, ou, pior, que cabeças caíssem do respectivo pescoço. O simples fato de existir um tribunal régio como o da Inquisição prova, sem margem a dúvida, que a liberdade de pensamento e expressão não era consentida. Veja-se, como evidência, o que o "moderno" Regimento do Cardeal da Cunha determinava, no Título IV, § 8, quanto aos condenados por heresia que se recusassem a reconhecer seus supostos erros como tais e fossem, portanto, "relaxados à justiça secular" (³): "Os hereges afirmativos, que persistirem em seus erros até final conclusão de sua causa, serão entregues e relaxados à Justiça Secular; e sendo caso que possa temer-se que digam em público algumas coisas contra nossa Santa Fé, levarão mordaça na boca, e hábito de relaxados; porém se reconhecerem seus erros e se reduzirem à nossa Santa Fé Católica, fazendo inteira confissão de suas culpas, serão recebidos ao grêmio e união da Santa Madre Igreja, e terão reclusão em algum mosteiro ou colégio de Regulares Doutos, que os possam bem instruir nas coisas da fé."
Não importa se, a partir de 1774, foram muitos ou poucos os condenados pela Inquisição. O que interessa é que o cerceamento à liberdade individual permanecia. Era proibido pensar diferente da maioria ou questionar crenças estabelecidas. Considerem, por comparação, meus leitores: um móvel velho e em mau estado se torna novo e bom, apenas por receber uma camada de tinta ou uma demão de verniz? É certo que não. Era inútil tentar reformar o Tribunal do Santo Ofício com a introdução de um novo Regimento, por moderado que fosse em relação aos anteriores. O problema estava na Inquisição em si mesma e nas razões para sua existência.

(1) Sempre há um tapete por perto...
(2) Uma bula papal autorizou sua restauração em 1814.
(3) Expressão usada em todo o Regimento de 1774 para designar aqueles que seriam executados.


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