terça-feira, 26 de setembro de 2017

Produtos agrícolas cultivados por escravos para consumo próprio e para venda

Muitos proprietários de escravos tinham por costume ceder a seus cativos um pequeno lote, no qual podiam cultivar aquilo que quisessem. Essa prática era conveniente para os senhores, pois:
  • Suplementava a alimentação dos escravos sem que o proprietário tivesse qualquer despesa com isso;
  • Mantinha os escravos ocupados nas poucas horas vagas, nos domingos e nos feriados, evitando que se encontrassem para planejamento de alguma rebelião ou fuga;
  • Se os escravos eventualmente obtinham uma produção significativa, vendiam-na por preço módico para o próprio senhor.
Os cultivos usualmente praticados obedeciam às características regionais relacionadas a condições de clima e solo, mas alguns itens eram recorrentes, como milho, mandioca, abóbora, feijão e hortaliças. Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o segundo Barão de Paty do Alferes, recomendou, em sua Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro (¹):
"O fazendeiro deve, o mais próximo que for possível da sede da fazenda, reservar uma porção de terra onde os escravos façam as suas roças, plantação de café, milho, feijões, bananas, batatas, carás, aipim, canas, etc. Não se deve, porém, consentir que a sua colheita seja vendida a outrem, e sim a seu senhor, que deve fielmente pagar-lhes por um preço razoável: isto para evitar extravios e frequências das tabernas." (²)
A despeito desse conselho dado aos senhores, havia escravos que vendiam seu pequeno excedente quando, onde e para quem queriam. O caso é que alguns senhores mantinham grande vigilância quanto a este assunto, enquanto outros não se importavam com a questão. Cabe também assinalar, em rápida explicação, que muitos fazendeiros votavam ódio mortal às tabernas existentes na beira das estradas que passavam perto de suas propriedades agrícolas porque, além de convidarem à embriaguez dos escravos, incapacitando-os temporariamente para o trabalho, era também nelas que, não raro, as fugas e rebeliões eram combinadas.
Resta considerar o que é que os escravos faziam com o dinheiro que recebiam pela venda de sua pequena produção agrícola. Responde Lacerda Werneck:
"Este dinheiro serve para os escravos haverem o tabaco e o fumo, de que são grandes consumidores, comprarem a comida de regalo, roupa fina, a de sua mulher se são casados, e de seus filhos." (³)
Escravo pronto para ir ao trabalho (⁴)
Fica a pergunta: Não seria demais esperar que escravos, submetidos a condições de vida aviltantes, se comportassem como operosos trabalhadores livres, poupando a pequena renda que obtinham e gastando apenas em artigos realmente úteis, para si mesmos e para suas famílias? Aliás, em relação à maior parte do tempo no qual prevaleceu o trabalho compulsório no Brasil, falar em famílias de escravos é um grande problema - não porque elas não existissem, mas porque o sistema em nada favorecia a estabilidade e a formação de vínculos duradouros entre cativos.
Uma questão sempre debatida vincula-se aos escravos que, economizando por muitos anos, acabavam por ter recursos suficientes para comprar a própria liberdade. Ora, isso não era impossível, e, às vezes, acontecia. Não era, porém, fato corriqueiro, uma vez que não era fácil, apenas plantando e vendendo modestos excedentes por baixo preço, chegar a ter tanto quanto o valor de mercado de um escravo. Se excetuarmos a fase final da escravidão (após 1870), quando estava claro que a abolição seria apenas uma questão de tempo, o trabalho mais favorável às manumissões não estava na agricultura, e sim na mineração, porque era aí que um escravo, tendo a sorte de achar grande quantidade de ouro ou diamantes valiosos, acabava sendo premiado com a liberdade. Há registro de cativos nessas condições que, uma vez libertos, acabaram, eles próprios, também mineradores e senhores de escravos.

(1) A Memória do Barão de Paty do Alferes teve a primeira publicação no ano de 1847.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 40.
(3) Ibid.
(4) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


Veja também:

6 comentários:

  1. O homem como lobo do homem. Já ouvi alguns dizerem que odeiam os brancos por causa da escravatura mas, na verdade, os próprios vários senhores negros mantinham e vendiam os seus compatriotas. O poder corrompe e, não raras vezes, não precisa ser um poder tão grande assim
    Abraço, Marta

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. No Brasil, especificamente, houve casos de escravos que, uma vez libertos, vieram a ser também proprietários de escravos. Ter escravos acrescentava poder e posição social. Uma "lógica" perversa, concorda?

      Excluir
  2. Marta,
    Que ricas informações!
    Obrigada por
    Compartilhar.
    Bjins
    CatiahoAlc.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu é que lhe agradeço pelos poemas que leio em seus blogs quase todos os dias!
      Um abraço...

      Excluir
  3. A questão fulcral não é a raça, mas de quem detém o poder. aquilo que se segue é fácil imaginar.

    Abraço :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. No Brasil, especificamente, havia (e, infelizmente, ainda há) preconceito ligado a questões raciais. Mas você tem razão: muitas vezes o problema vai além, passando pelo cenário mais amplo das relações de poder.

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.