Escravos urbanos eram muito frequentemente ocupados por seus senhores na tarefa de vender pelas ruas uma grande variedade de mercadorias, nas quais se incluíam verduras, café, limonada e, para encanto da criançada, doces. É óbvio que o dinheiro resultante das vendas pertencia aos proprietários dos escravos, ainda que haja relatos de arranjos entre senhores e cativos para que esses últimos recebessem uma pequena "comissão", proporcional ao lucro obtido.
Havia, porém, ao menos uma ocasião no ano (²) em que as escravas que vendiam doces podiam fazê-lo por conta própria: era a quinta-feira da Semana Santa.
Descrevendo como a população da capital do Império celebrava a data, o missionário e pastor metodista Daniel P. Kidder, que andou pelo Brasil entre 1837 e 1840, observou:
"Não se tocam sinos nem se queima foguetes nesse dia. As igrejas são vedadas à luz do dia e seu interior profusamente iluminado por velas de cera, no meio das quais fica exposta, no altar-mor, a Sagrada Hóstia. Dois homens paramentados em seda roxa postam-se de guarda. Em algumas igrejas fica exposta a imagem do Senhor morto, sob um pequeno dossel, tendo apenas uma das mãos para fora, de maneira que o povo possa beijá-la. Numa salva de prata que fica ao lado da imagem, depositam óbolos em dinheiro." (³)
E o que é que esse ritual fúnebre tinha a ver com a venda de doces? Não se esqueçam os leitores que era Quinta-feira Santa, sim, mas no Brasil. Sigamos com Kidder:
"À noite o povo passeia pelas ruas e visita as igrejas. Por essa ocasião, há geralmente profusa troca de presentes, o que redunda em benefício das escravas que nesses dias têm licença para vender doces por conta própria." (⁴)
À parte todo o horror da escravidão, é bem possível que, sob o aspecto festivo, venhamos até a ter saudades de um tempo no qual não vivemos...
(1) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Não desconsiderando, por certo, outros costumes regionais.
(1) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Não desconsiderando, por certo, outros costumes regionais.
(3) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 133.
(4) Ibid.
Veja também:
Pequenas coisas que ajudavam a amenizar os dias...
ResponderExcluirMuito interessante, Marta!
Um beijinho :)
Conseguiam transformar uma celebração de luto em uma grande festa. E, quanto às escravas que vendiam doces, não há dúvida de que a prática amenizava a severidade da escravidão, ainda que em nada alterasse a sua condição de cativas.
ExcluirImagino que fosse um dia muito especial para essas escravas que podiam fingir, por um dia, serem senhoras do seu nariz.
ResponderExcluirBeijinhos.
Ruthia d'O Berço do Mundo
Embora não fosse muito comum, havia escravas que, com o produto das vendas (nessas e em outras ocasiões), conseguiam juntar o suficiente para a compra da liberdade.
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