quarta-feira, 9 de março de 2016

Zona Tórrida

As grandes navegações dos Séculos XV e XVI provaram que as classificações climáticas adotadas pelos sábios da Antiguidade continham ideias absurdas


"É sempre um prazer ver as velhas e respeitáveis verdades 'respeitadas pelo tempo' de nossa infância esfrangalhadas e atiradas ao vento."
Richard Burton (1)

A ideia de classificar o mundo em três zonas climáticas surgiu, ao que parece, na cabeça de Eratóstenes (cerca de 276 a.C. a 195 a.C.), um sábio helenista que viveu em Alexandria (a do Egito). Foi ele mesmo quem colocou em prática um experimento que permitiu, naqueles tempos remotos, medir com razoável precisão a circunferência da Terra. Mas não foi só. Para chegar à noção de que a Terra tinha três zonas climáticas (frígida, temperada e tórrida), Eratóstenes precisava ter já algum conhecimento das condições do planeta em áreas que nunca havia visitado, além de supor, naturalmente, uma correspondência de climas ao longo da esfera terrestre.
Antes dele, porém, outros já haviam considerado a existência de uma misteriosa região, que, segundo conjecturavam, era tão quente que de modo algum poderia ser habitada. E, como Aristóteles (c. 384 a.C. - 322 a.C.) estava entre os defensores dessa ideia, a dita opinião foi, por muito tempo, considerada por muitos uma verdade incontestável, levando-se em consideração o prestígio atribuído ao pensamento do Estagirita entre a intelectualidade medieval.

Zonas climáticas da Terra, de acordo com a Cosmographia de Petrus Apianus,
publicada em Paris em 1553

As grandes navegações dos Séculos XV e XVI vieram provar que Aristóteles e companhia estavam simplesmente errados. Muito errados. Havia, é fato, uma região da Terra cujas temperaturas eram mais elevadas que as conhecidas na Europa da época. Não era, porém, em absoluto, impossível a existência de vida, inclusive humana, nesse lugar. E, já que na Antiguidade houve, também, quem achasse que a suposta zona tórrida devia ser um ótimo lugar, a coisa assumiu proporções de uma batalha ideológica, ainda que muitos séculos depois que os pensadores gregos e helenistas tinham andado por este pequeno planeta. Um melhor conhecimento da Terra, em decorrência das viagens marítimas, acabou, finalmente, com as dúvidas.
O Padre Simão de Vasconcelos, jesuíta que viveu no Brasil durante o Século XVII, escreveu bastante sobre o "desmentido" em relação às teorias relacionadas à zona tórrida, desde que se descobrira a América e, mais especificamente, desde que se passara a explorar o Hemisfério Sul:
"Confesso que andando correndo esta terra", observou ele, "e considerando a perfeição de sua formosura, me ria comigo algumas vezes, lembrando dos ditos dos antigos, e do engano em que viveram tantos séculos." (²)
Explicou, então, aos leitores das suas Notícias Curiosas e Necessárias:
"Aristóteles, o príncipe dos sábios, no segundo livro de seus Meteoros, capítulo V, com toda a escola de seus discípulos, foi o primeiro que infamou a América (³), apregoando dela e de toda a mais terra que corresponde à Zona a que chamava Tórrida, entre os dois círculos solstícios de Câncer e Capricórnio, ser terra inútil, seca, requeimada e incapaz de fontes, rios, pastos e arvoredos, e, por conseguinte deserta para sempre, e inabitável aos homens, pelos excessivos ardores causados da proximidade do Sol, que anda sempre sobre ela." (⁴)
Dando asas à imaginação, Simão de Vasconcelos pôs-se a pensar sobre qual seria a reação dos sábios da Antiguidade se pudessem ver o que era, de fato, a região do mundo à qual chamavam Zona Tórrida:
"Que diriam, se ressuscitassem hoje conosco, e vissem o que vemos? Sem dúvida que arrependidos diriam que a terra do Brasil, toda a América e toda a meia Zona, a que chamavam Tórrida, não só não é terra inútil, seca, requeimada, deserta, inabitável para gente humana, mas pelo contrário, que é uma região temperada, amena, abundante de chuvas, orvalhos, fontes, rios, pastos, verdura, arvoredos e frutos para perfeita habitação de viventes." (⁵)
Apresentou, por fim, em contraste, a opinião dos que, segundo ele, entendiam que a Zona Tórrida era não somente uma região perfeitamente ecúmena, mas ainda um verdadeiro paraíso terrestre:
"Não só os homens de nossos séculos, houve também muitos dos antigos que acertaram no conhecimento desta verdade. Assim o afirmavam Eratóstenes, Políbio, Ptolomeu, Avicena e não poucos dos nossos teólogos, de que faz menção São Tomás [...], que chegam a defender que nesta parte debaixo da linha equinocial criara Deus o paraíso terrestre, por ser esta a parte do mundo mais temperada, deleitosa e amena para a vida humana. Isto clamavam já tanto dantes estes autores, porém não eram cridos." (⁶)
Paraíso terrestre? Bem, aí já há certo exagero...

(1) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 306.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 236.
(3) Sem jamais tê-la visto e, provavelmente, sem ter certeza de sua existência.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Op. cit., p. 220.
(5) Ibid., pp. 228 e 229.
(6) Ibid., pp. 229 e 230.


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4 comentários:

  1. É muito interessante pensar que tão pouco tempo atrás cada pedaço da terra sabia tão pouco das outras partes. Hoje damos tudo como óbio, mas nem imaginamos direito como as pessoas pensavam sobre isso no passado. Será que no futuro discutiremos esse assunto ao falar de viagens interplanetárias, por exemplo?
    Mas me impressiona ainda mais que em grandes livros como Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, escrito na década de 1930, ainda encontramos muitas pesquisas e opiniões sobre os efeitos das "zonas tórridas" em seus habitantes.

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    1. À medida que o conhecimento científico avança, percebemos que muitos conceitos antigos, que tínhamos como verdadeiros, estavam errados, no todo ou em parte. Isso vale para qualquer ramo do conhecimento, o que nos leva ao caso de Gilberto Freyre (cuja obra foi e é ainda muito relevante). Esse autor viveu em uma época na qual a ideia de que o ambiente era decisivo no desenvolvimento dos povos era ainda amplamente aceita, e usada para explicar, por exemplo, diferenças marcantes entre o desenvolvimento econômico do Brasil e dos Estados Unidos. O clima tépido de grande parte do Brasil servia, nesse tipo de pensamento, para explicar a baixa produtividade no trabalho, a falta de empenho intelectual, até mesmo uma suposta preguiça, a sensualidade exacerbada, e por aí vai.
      Pois bem, como vc sabe, o tempo passa e mesmo as grandes obras são reavaliadas: os autores, por geniais que sejam, são produto de seu meio e de seu tempo (e nem nós escapamos disso...). Mas é justamente aí que se encontra muito da beleza desse processo de busca pela compreensão do passado, até como uma luz para os dias de hoje.

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  2. E, contudo, hoje que possuímos um manancial de informação sobre o ponto mais remoto do planeta, continuamos cheios de preconceitos. Talvez daqui a dois séculos façamos como esse jesuíta, e demos boas gargalhadas acerca das certezas do século XXI.
    Beijinho
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Adorei seu comentário, já que ele pressupõe que, dentro de dois séculos, estaremos todos vivíssimos para rir das certezas do Século XXI. Mas é isso mesmo, cada nova geração vê, com orgulho, suas supostas conquistas, e zomba dos erros cometidos pelos antigos, esquecendo-se, porém, de que, apesar dos erros, foram as conquistas do passado que possibilitaram os avanços da atualidade.

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