quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Regulamentos para vendedores de rua em São Paulo no Século XIX

Vendedora de frutas no Rio de Janeiro, Século XIX,
de acordo com Rugendas (¹)
Parte expressiva do comércio que se fazia nas vilas e cidades dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, nas primeiras décadas do Império, era obra de vendedores ambulantes. Disciplinar essa prática não era exatamente uma tarefa fácil: afinal, se um desses comerciantes cometesse alguma infração e, tão rápido quanto possível, desse no pé, como encontrá-lo e chamá-lo às contas, em meio à vastidão do Brasil ainda escassamente povoado? 
Era preciso, além disso, garantir alguma qualidade e higiene no que se comercializava, ainda que essas palavras não tivessem, na prática, o mesmo significado que a elas atribuímos. E, de não pouca importância, era preciso assegurar também que vendedores ambulantes não prejudicassem os comerciantes estabelecidos em pontos fixos, ou seja, em vendas e tabernas. Acrescente-se, ainda, que muitos vendedores ambulantes eram escravos, mandados às ruas pelo respectivo senhor, que esperava receber, a cada dia, os lucros desse comércio, e ter-se-á uma ideia da variedade de questões envolvidas.
Em 8 de março de1820 - há mais de duzentos anos, portanto - a Câmara de São Paulo decidiu lançar um conjunto de posturas, algumas delas destinadas a disciplinar o comércio ambulante dos "vendedores de rua", como então se dizia. Era o caso da 7ª Postura, que enunciava:
"Que todas as pessoas que andarem pelas ruas vendendo mantimentos, gêneros ou fazendas, sejam obrigados a apregoar o que vendem, pena de seiscentos e quarenta réis, sejam forros ou escravos." (²)
Que vantagens poderiam vir dessa obrigação de proclamar o que é que se vendia? Ressalvado o desconforto com o eventual berreiro na rua, quem estivesse dentro de casa poderia ouvir e, tendo interesse, sair para comprar; evitava-se, também, que se vendesse qualquer coisa proibida. Esta 7ª Postura resultava, simultaneamente, em um favor à população e em um instrumento de controle. A imposição de multa aos desobedientes era garantia, ao menos sob o aspecto formal, de que a ordem era séria e devia ser cumprida. 
Já a 11ª Postura dizia:
"Que todos os que andarem vendendo pelas ruas desta cidade os mantimentos de farinha, feijão e milho sejam obrigados a trazer duas medidas, uma de quarta e outra de meia quarta, e a venderem ao povo [..] as quantidades [de] que precisar, com a pena de seis mil réis [...]." (²)
Disso resultavam pelo menos duas vantagens aos compradores: o uso de medidas (cuja honestidade era passível de fiscalização), garantia que se entregasse a quantidade efetivamente solicitada; por outro lado, os vendedores ficavam impedidos de impor uma quantidade mínima para aquisição.
Tudo isso parece muito justo e razoável. Nesses tempos já longínquos, contudo, nem sempre leis e regulamentos eram tão prontamente cumpridos quanto se esperava, fosse por falta de fiscalização, que não era tarefa fácil, ou mesmo por conivência de quem deveria exercer o controle. No ano seguinte, 1821, o conflito entre vendeiros e quitandeiras seria assunto na Câmara de São Paulo, e virá a ser também neste blog. Aguardem a próxima postagem. 

(1) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827.
(2) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


Veja também:

3 comentários:

  1. É de se imaginar quantas confusões aconteceram nesse período entre vendedores e clientes.

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    1. Deixando de lado o aspecto da proporção, seria semelhante aos confrontos entre lojistas e camelôs em algumas áreas de São Paulo na atualidade.

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    2. Lendo essas realidades só consigo pensar em pesquisadores que esquecem que a história pesquisada era vida vivida como a nossa hoje também é.

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