Não é de hoje que comerciantes estabelecidos protestam contra a presença de vendedores ambulantes diante de suas lojas, sob a alegação de concorrência desleal, visto que eles, os estabelecidos, em virtude dos impostos que pagam, não podem praticar preços similares aos dos ambulantes. Vou mostrar a vocês, leitores, que essa questão não tem, mesmo, nada de recente.
Quando São Paulo era apenas uma vila pequenina, vereadores tentavam atrair comerciantes que quisessem vender gêneros alimentícios, mas tinham dificuldade nessa tarefa. Afinal, para quem viesse do porto de Santos, existia o desafio, enorme para as condições da época, de atravessar as escarpas da Serra do Mar. Nenhuma surpresa, portanto, que poucos julgassem que a empreitada valia a pena. Mas, com o correr dos anos, a vila cresceu, tornou-se cidade e chegou a capital da Província. Muitos comerciantes se estabeleceram, e não tardou para que vendeiros começassem a pressionar a Câmara da cidade para que impedisse, ou, ao menos, limitasse o trabalho das quitandeiras.
É melhor explicar: vendeiros eram proprietários de uma "venda", um estabelecimento que comercializava uma grande variedade de mercadorias, incluindo alimentos, artigos de couro e ferragens e, quase sempre, alguma cachaça, além de outras bebidas. Já as quitandeiras eram vendedoras ambulantes, algumas livres, muitas delas escravas, que comercializavam frutas, legumes e verduras, principalmente, embora, em menor número, também doces, pães, aves para abate e (até) cachaça. A aglomeração de algumas dessas quitandeiras diante da entrada ou perto de uma venda ou taberna era óbvia concorrência ao comércio estabelecido.
Dada a explicação, é simples compreender o motivo de a Ata da Câmara de São Paulo trazer este registro, relativo à vereação de 21 de fevereiro de 1821: "Nesta despachou-se o requerimento dos vendeiros desta cidade e mandou-se passar edital na forma requerida contra as quitandeiras, para não venderem gêneros que dependem de peso e medida, e próprios das tavernas (¹) [...]" (²). Comerciantes estabelecidos eram obrigados a dispor de pesos e medidas aferidos periodicamente por pessoa determinada pela Câmara, ainda que, por parte da população, as queixas contra fraudes não fossem nenhuma raridade.
Exatamente um mês mais tarde, em 21 de março de 1821, registrou-se na Ata: "[...] lavrou-se edital sobre as quitandeiras, a requerimento dos vendeiros desta cidade, para as mesmas não venderem gêneros dependentes de peso e medidas, e sim próprios de quitandas" (²). Admitidas eventuais exceções, os vendeiros eram gente de condição livre, enquanto a maioria das quitandeiras, escravizadas que praticavam o comércio ambulante para lucro dos respectivos senhores. Esse prosaico conflito de interesses abre uma fresta na cortina do tempo para que vejamos alguma coisa das lutas de quem ocupava as ruas de São Paulo em dias já distantes.
Desde então, são passados mais de duzentos anos. A escravidão, é claro, ficou para trás, mas o mundo do trabalho, em meio aos solavancos da economia, ainda oferece, ao observador inteligente, um panorama que grita por soluções justas e duradouras.
Quando São Paulo era apenas uma vila pequenina, vereadores tentavam atrair comerciantes que quisessem vender gêneros alimentícios, mas tinham dificuldade nessa tarefa. Afinal, para quem viesse do porto de Santos, existia o desafio, enorme para as condições da época, de atravessar as escarpas da Serra do Mar. Nenhuma surpresa, portanto, que poucos julgassem que a empreitada valia a pena. Mas, com o correr dos anos, a vila cresceu, tornou-se cidade e chegou a capital da Província. Muitos comerciantes se estabeleceram, e não tardou para que vendeiros começassem a pressionar a Câmara da cidade para que impedisse, ou, ao menos, limitasse o trabalho das quitandeiras.
É melhor explicar: vendeiros eram proprietários de uma "venda", um estabelecimento que comercializava uma grande variedade de mercadorias, incluindo alimentos, artigos de couro e ferragens e, quase sempre, alguma cachaça, além de outras bebidas. Já as quitandeiras eram vendedoras ambulantes, algumas livres, muitas delas escravas, que comercializavam frutas, legumes e verduras, principalmente, embora, em menor número, também doces, pães, aves para abate e (até) cachaça. A aglomeração de algumas dessas quitandeiras diante da entrada ou perto de uma venda ou taberna era óbvia concorrência ao comércio estabelecido.
Dada a explicação, é simples compreender o motivo de a Ata da Câmara de São Paulo trazer este registro, relativo à vereação de 21 de fevereiro de 1821: "Nesta despachou-se o requerimento dos vendeiros desta cidade e mandou-se passar edital na forma requerida contra as quitandeiras, para não venderem gêneros que dependem de peso e medida, e próprios das tavernas (¹) [...]" (²). Comerciantes estabelecidos eram obrigados a dispor de pesos e medidas aferidos periodicamente por pessoa determinada pela Câmara, ainda que, por parte da população, as queixas contra fraudes não fossem nenhuma raridade.
Exatamente um mês mais tarde, em 21 de março de 1821, registrou-se na Ata: "[...] lavrou-se edital sobre as quitandeiras, a requerimento dos vendeiros desta cidade, para as mesmas não venderem gêneros dependentes de peso e medidas, e sim próprios de quitandas" (²). Admitidas eventuais exceções, os vendeiros eram gente de condição livre, enquanto a maioria das quitandeiras, escravizadas que praticavam o comércio ambulante para lucro dos respectivos senhores. Esse prosaico conflito de interesses abre uma fresta na cortina do tempo para que vejamos alguma coisa das lutas de quem ocupava as ruas de São Paulo em dias já distantes.
Desde então, são passados mais de duzentos anos. A escravidão, é claro, ficou para trás, mas o mundo do trabalho, em meio aos solavancos da economia, ainda oferece, ao observador inteligente, um panorama que grita por soluções justas e duradouras.
(1) Taberna ou taverna, o significado é o mesmo.
(2) Os trechos aqui citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) Os trechos aqui citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
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