quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Sem roupas novas para o Natal

Argumentos usados no Século XVII para justificar a escravização de indígenas


Padre Antônio Vieira (²)
Quando se tratava de encontrar argumentos que justificassem a escravização de indígenas, parece que a criatividade da elite colonial quase não conhecia limites. Veremos aqui, especificamente, o que acontecia no chamado Estado do Maranhão e Grão-Pará que, durante algum tempo, teve governo separado do Estado do Brasil.
Suponho, contudo, que entre os leitores possa logo surgir a seguinte questão: a quem a elite colonial dirigia argumentos para obter autorização para o "descimento de gentio", eufemismo que, ao fim e ao cabo, significava simplesmente escravização? No Século XVII, monarcas portugueses, talvez até com boas intenções, vinham proibindo a escravização dos nativos da América, admitindo, porém, algumas exceções, e era nisso que consistia o problema. Seria permitida a "guerra justa" contra indígenas que atacassem fazendas e povoações de colonizadores, bem como daqueles que recusassem a catequese. Portanto, no caso específico do Maranhão e do Pará, seria necessário que o governador, que em nome do rei exercia o mando, autorizasse uma expedição de apresamento (¹). Admite-se que, às vezes, os próprios governadores tinham interesse nessas expedições de escravização, não hesitando em alocar recursos públicos para tanto, além de providenciar uma justificativa considerada plausível para que indígenas fossem atacados, tivessem suas aldeias incendiadas e, quanto aos sobreviventes, fossem, acorrentados, trazidos às povoações, para distribuição entre os interessados. 
Mas havia outro obstáculo. Os missionários jesuítas insistiam em ter o controle sobre a catequese de indígenas e, por isso, eram opositores severos à sua escravização. Daí resultava o ódio que parte da população colonial votava aos "padres da Companhia", e que, em não poucos casos, resultou até em violência explícita. Dentre os religiosos que se destacaram na oposição ao cativeiro de ameríndios estava o padre Antônio Vieira (³), a quem os moradores de Belém do Pará, no ano de 1661, dirigiram uma carta, na qual, entre outros, apresentavam os seguintes argumentos para justificar a alegada necessidade de escravizar indígenas:

1. Colonizadores e suas famílias não podiam viver sem escravos
 "Representa a Câmara desta Cidade de Belém, Capitania do Grão-Pará, que serve este presente ano de 1661, ao M. Reverendo Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, Visitador Geral das missões deste Estado, as grandes necessidades que padecem estes povos, causadas da limitação em que vivem, de alguns anos a esta parte, por muita falta que têm de escravos com que se sirvam, sendo impossível o viverem sem eles [sic]." (⁴)
2. Moradores precisavam de escravos para o trabalho de remeiros
"[...] Está este povo  e os moradores dele em estado o mais miserável que se pode considerar, razão por que alguns homens nobres, conquistadores e povoadores, que derramaram o seu sangue e têm gastado a sua vida em serviço de Sua Majestade, e ajudaram a conquistar esta Conquista, não trazem seus filhos e família a esta cidade, por não terem remeiros que lhes comboiem canoas para virem, sendo coisa infalível e certa ser a navegação por mar, a qual se não pode conseguir sem escravos [...]." (⁵)
3. Moradores de Belém não tinham quem realizasse tarefas domésticas
"[...] muitos vivem nesta cidade, que não têm quem lhes vá buscar um feixe de lenha, nem um pote de água; e assim que estão perecendo muitos, por não terem com quem lavrarem suas fazendas, para comprar o que lhes é necessário, tudo procedido da falta de escravos, havendo tantos em muitos sertões [sic!!!] em quantidade [...]." (⁶)
4. A pobreza em que os colonizadores viviam era tanta, que nem mesmo tinham roupas novas para a missa do Natal
"[...] esta festa passada do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, não vieram a esta cidade as famílias de alguns homens nobres, por causa de suas filhas donzelas não terem o que vestir para irem ouvir missa, nem seus pais possuem cabedal para o comprarem, e tudo procedido de não resgatarem escravos [...]." (⁷)
Pobre (e hipócrita) religiosidade dos que se pretendiam tão nobres! Toda gente, ou quase toda ela, se achava, de algum modo, com direitos de fidalguia. Por que iria, então, suar em qualquer trabalho que pusesse em risco a pretendida nobreza? Ao que parece, moradores não reconheciam (ou não queriam reconhecer) que seu modo de vida é que os tornava, em tudo, dependentes do trabalho dos escravizados, coisa que, também, em certo sentido, não deixava de ser um tipo de escravidão, na qual, deliberadamente, haviam se metido. Note-se, porém, que, se a ideia era provocar lágrimas no padre Vieira, em virtude da alegada penúria em que viviam os escravizadores, convencendo-o a apoiar as expedições de captura de indígenas, a carta foi um fracasso absoluto.
 
(1) A situação era diferente em São Paulo, de onde, por muito tempo, partiram expedições de apresamento de indígenas. O governo português estava longe e, na prática, era apenas formalmente reconhecido. Até mesmo camaristas de São Paulo, que alegavam em documentos oficiais sua oposição às levas de bandeirantes escravizadores de ameríndios, acabavam, em não poucos casos, se juntando a eles e indo passar meses no sertão. Os jesuítas faziam ameaças, sugerindo até que fariam vir a Inquisição, pobre argumento quando se considera a dificuldade de acesso a São Paulo que havia pelo escabroso Caminho do Mar. Quando teimaram na defesa dos indígenas, jesuítas foram expulsos de São Paulo e só muito tempo depois readmitidos, sob a condição de que não dariam palpites em assuntos seculares.
(2) Cf. BARROS, André de, S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira. Lisboa: Officina Sylviana, 1746.
(3) Sim, aquele mesmo dos famosos "Sermões" que vocês, leitores, devem ter estudado em suas aulas de Literatura.
(4) Cf. BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão, Livro XIV. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 448.
(5) Ibid., p. 449.
(6) Ibid. 
(7) Ibid.


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5 comentários:

  1. Boa noite. Feliz Natal com muita saúde e paz. Espero que seus sonhos e projetos possam renascer ou serem conquistados.

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    1. Obrigada, Luiz. Parabéns por seu blog. Continue a postar muitas fotos, sim?

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  2. Boa Noite. Desejo um feliz ano novo e que em 2023 você possa realizar todos os seus sonhos e projetos.

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