quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Quanto o Nilo precisava transbordar para que as colheitas fossem boas

Vocês sabem, leitores, que, graças às enchentes periódicas do Nilo, o Egito foi, na Antiguidade, o mais destacado celeiro do mundo mediterrânico. Mas não pensem que, ano após ano, as cheias eram rigorosamente iguais. Nada disso. E, porque não eram, a época em que as águas deveriam começar a subir era cercada de grande expectativa. Não era para menos: suprema fartura e miséria estavam entre os resultados possíveis de um transbordamento mais ou menos generoso. Era feita uma medida exata do nível do rio, enquanto as águas, ao se espalharem pelas margens, arrastavam consigo o precioso húmus que fertilizava o solo. Isto, de acordo com Plínio (¹), no Livro V de Naturalis Historia, devia acontecer anualmente, pouco depois do solstício de verão:
"O Nilo começa a subir na primeira lua nova após o solstício de verão, e vai aumentando gradualmente de volume enquanto o sol passa por Câncer, chegando ao auge quando está em Leão; em Virgem o volume decresce pouco a pouco." (²)
Mas quanto, afinal, era necessário que as águas se elevassem acima do nível normal? Continuamos com Plínio:
"Com doze cúbitos a fome se manifesta, com treze há escassez, quatorze começa a trazer alegria, com quinze há segurança, com dezesseis, felicidade. O máximo transbordamento já registrado foi de dezoito cúbitos, durante o principado de Cláudio, e o mínimo foi de cinco, na época da Batalha de Farsália (³), qual grande prodígio [...]."
Cabem aqui, leitores, ao menos duas observações:
  • O cúbito (ou côvado) egípcio tinha cerca de 50 cm; o romano, um pouco menos. Plínio não explicou qual deles utilizou, de modo que, fazendo uso do valor mais alto, constatamos que, para a ocorrência de fome, haveria uma elevação de apenas seis metros, enquanto que um acréscimo de oito metros traria abundância. Os extremos registrados por Plínio seriam, respectivamente, de dois e meio e nove metros.
  • Plínio tinha um modo romano de ver os fatos, não de todo injustificável, já que ele próprio era romano e os romanos, em seu tempo, eram os "donos do mundo". Além disso, os leitores de Plínio seriam romanos também. Desde que os romanos passaram, implícita ou explicitamente, a mandar no Egito, fizeram dele a central de abastecimento de Roma, livrando-a da ameaça da fome e, por conseguinte, de uma revolta popular que poderia ter consequências incalculáveis. Por isso, não é surpresa que mencione níveis máximo e mínimo a partir de ocasiões relevantes para os romanos. A história do Egito é muito longa e muito anterior ao nascimento de certa cidadezinha insolente na Península Itálica, sendo bastante provável que, ao longo de muitos séculos, outros momentos de máxima e mínima na elevação do Nilo tenham ocorrido. 
Pois bem, finda a cheia, o que acontecia? De acordo com Heródoto, competia aos camponeses lançar sementes ao solo e deixar que seus rebanhos pisoteassem o terreno. As sementes, germinando, trariam colheitas melhores ou piores, de acordo com a cheia que precedera a semeadura. A vida dos camponeses egípcios seria, portanto, quase um paraíso... Mas não era. Como quase todos os camponeses, em quase todos os lugares do mundo, em quase todos os tempos, os do Egito trabalhavam muito, mas viam parte considerável de sua produção convertida em impostos, destinados à manutenção do faraó (com todos os seus caprichos, piramidais ou não), da nobreza, da altamente privilegiada elite sacerdotal, dos numerosos funcionários públicos (escribas, coletores de impostos, etc.) e do exército. Era muita gente dependendo do trabalho daqueles que cultivavam a terra. 
Só para completar a questão das cheias do Nilo, Plínio ainda observou: "Acrescente-se que o Nilo é o único rio que nunca emite algum odor." Talvez não tenha levado em conta algum acontecimento puntual.

(1) 23 - 79 d.C.
(2) Todas as citações de Naturalis Historia que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) 9 de agosto de 48 a.C.


4 comentários:

  1. Já naveguei no Nilo e presenciei a sua influência, ainda que hoje o fluxo possa ser mais ou menos regulado graças a algumas barragens, nomeadamente a de Assuão. É uma faixa de verde nas margens que se transforma, em apenas alguns metros, num deserto! Muito respeito por aqueles agricultores...
    Bom domingo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. A represa de Assuã trouxe muitas vantagens, mas também problemas, tais como o assoreamento e a propagação da esquistossomose, por exemplo, além da proliferação de mosquitos. Nada é perfeito...

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  2. Os camponeses, no Egipto ou em qualquer lugar, sempre na base da pirâmide...

    Continuação de bons escritos, Marta :)

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    1. Pode até haver exceções, mas é mesmo assim. Indispensáveis, os camponeses estão sempre "na base" e, frequentemente, foram e são também os mais explorados, em qualquer parte do vasto espectro de sistemas políticos. Iria longe a conta de quantas revoluções já se fizeram neste planeta com o propósito declarado de libertar os camponeses. Em que é que acabaram?!...

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