domingo, 4 de dezembro de 2011

Técnicas antigas de conservação de alimentos para viagens marítimas

Quem leu a postagem anterior deve ter considerado que os marinheiros de antigamente tinham, de ordinário, um passadio até confortável. Ledo engano. Como veremos a seguir, os métodos de conservação dos alimentos eram detestáveis, de modo que não bastava embarcar suprimentos adequados e em quantidade suficiente.
Lucas Rigaud, cozinheiro que trabalhou para várias casas reais europeias, publicou um livro cujo título era Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha, tendo a primeira edição circulado em 1780. Pois bem, esse especialista em satisfazer o apetite e a gula de muitas cabeças coroadas resolveu dar seus conselhos para a conservação de triviais presuntos destinados à alimentação dos navegantes, por um método que, segundo dizia, garantia que permanecessem adequados ao consumo. Escreveu ele:
"Para se conservarem os presuntos e transportar para climas mais quentes e remotos e passarem a linha (¹) sem risco de se perderem, deve-se observar a regra seguinte:
Depois de os presuntos estarem bem enxutos e corados, passem-se por vinagre bem forte e pulverizem-se e cubram-se de cinza de vides peneirada, e tornem-se a pendurar até enxugarem. Metam-se depois em uma caixa com a mesma cinza peneirada por cima e por baixo, e assim se irão pondo as camadas de presuntos e de cinza até encher a caixa, e pelos intervalos uma pouca de carqueja. Feito isto, pregue-se a tampa da caixa por tal modo que lhe não possa entrar o ar, e ao embarcar, ter o cuidado de a pôr na parte mais fresca e enxuta do navio. Por este modo certamente se poderá comer o presunto com toda a sua perfeição, ainda que a viagem seja de dois ou três anos, e girem o globo em redondo."
Não contente em esbanjar seus conhecimentos, o bravo cozinheiro ainda explicou por que tratava desse assunto, entrando na questão que mais nos interessa:
"O que me fez lançar aqui esta receita foi estar eu no Rio de Janeiro com o Excelentíssimo Conde da Cunha (²), e todos quantos presuntos nos mandaram de Lisboa, chegaram sempre corruptos, ou fosse pelo calor ou umidade, ou pelas borras de azeite em que os metiam, que além do mau gosto e mau cheiro que lhe davam, não deixa de ser uma grande porcaria."
Fiquem à vontade, meus leitores, podem torcer o nariz diante desse espetáculo nada agradável de presuntos nadando em azeite! Bem tinha suas razões Lucas Rigaud, era mesmo uma porcaria... Mas isso nos manda de volta ao assunto inicial sobre a alimentação em embarcações oceânicas nos séculos XVI, XVII ou XVIII: Se assim se conservavam os presuntos, imagine-se o restante, ainda mais se pensarmos nas péssimas condições de higiene vigentes, quando ratos de todo tipo infestavam os navios e tinham, necessariamente, até por uma questão de sobrevivência, que compartilhar as viandas destinadas aos marinheiros. Quanto a estes, não havia escolha, ou compartilhavam as refeições com seus colegas murídeos, ou morriam de fome.
Resta apenas uma interrogação: sendo certo que se procurassem meios de melhor conservar os alimentos durante as viagens marítimas, que necessidade havia de que no Rio de Janeiro se comessem presuntos mandados de Lisboa?

(1) Refere-se, naturalmente, à ultrapassagem da linha do Equador, por navegantes que vinham do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul.

4 comentários:

  1. Respostas
    1. Olá, Bruna,
      Cinza de vides é a cinza obtida pela queima da videira, ou seja, da planta que produz uvas. Lucas Rigaud recomendava seu uso porque, entre outras razões, era muito fácil de ser obtida, quer na França, quer em Portugal.

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    2. Eu é que agradeço sua visita ao blog. Volte outras vezes :-)))

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