Embora confiassem encontrar caça e peixe pelo caminho, os monçoeiros que desde Araraitaguaba (Porto Feliz) partiam para as minas do Cuiabá pela rota do rio Tietê precisavam de considerável volume de suprimentos para a longa jornada. Assim, era rotina que, para "pessoas comuns", a matalotagem consistisse, basicamente, em feijão, farinha de mandioca e/ou farinha de milho, um pouco de toucinho e, obviamente, sal - ingredientes que eram usados a cada noite, ao ser preparada a comida do dia seguinte e que, em seu conjunto, originaram o "virado à paulista". A razão do nome fica portanto evidente, e ilustra muito bem como, de circunstâncias adversas, como eram as da rotina monçoeira, pode nascer uma especialidade culinária. Aliás, os chamados pratos típicos do Brasil encerram uma variedade de casos análogos. Aos que se interessam pelo assunto, digo que consultei um famosíssimo livro de receitas, muito popular no Brasil, que lista quase os mesmos ingredientes para o virado à paulista, apenas usando óleo e temperos diversos e sugerindo algumas guarnições, como ovos fritos e linguiças...
Os escravos remadores e a gente pobre que sonhava enriquecer com o ouro das minas não tinham a possibilidade de complementar a alimentação praticamente igual a cada dia, a menos que por sorte lhes caísse nas garras alguma caça. Se a infeliz vítima era uma anta (¹), então havia festa geral, com o churrasco inesperado seguindo noite adentro.
Araraitaguaba, o local de onde partiam as monções (Porto Feliz, SP) |
No entanto, se o monçoeiro era endinheirado (havia quem arriscasse os bens para tentar fortuna maior nas minas, ainda que fosse muito comum que alguém se desse por muito feliz se pudesse voltar com a vida e uns trapos sobre o corpo), podia incluir, por conta própria, outros itens em sua ração diária, desde que fossem passíveis de conservação, como biscoitos e presuntos. E não imagine o leitor que isso gerava constrangimentos entre os viajantes: nesses tempos anteriores à influência da Revolução Francesa as diferenças sociais eram vistas como coisa normal, que não se devia questionar, e sim aceitar. Nascia-se assim, e ponto final. Qualquer ideia fora disso era olhada com horror, e os poucos que ousavam expressar pontos de vista contrários eram tidos como uma espécie de lepra social altamente contagiosa e, por isso mesmo, perigosíssima, da qual gente decente devia fugir, e o Estado, zelando paternalmente, exterminar. A igualdade, porém, às vezes comparecia sob a forma da fome que acometia a todos, indistintamente, quando os alimentos acabavam ou se perdia uma embarcação que os transportava. Sobre isso, escreveu o secretário de D. Rodrigo César de Meneses, que foi a Cuiabá em 1726: "... tanto mais se quer antes perder um negro, sendo estes tão necessários, que um alqueire de mantimento, feijão ou farinha." (²) Malgrado a óbvia desvalorização da vida de um ser humano que transparece neste registro, vê-se o quanto o fantasma da falta de comida atormentava os monçoeiros. (³)
Exceções a essa regra geral sobre alimentação? Sim, podia haver. Sabemos pelo relato feito pelo Conde de Azambuja, Dom Antônio Rolim, que empreendeu a rota monçoeira em 1751, que usava-se levar algumas galinhas (vivas) para servirem de alimento (mortas, naturalmente) aos que adoecessem em razão das agruras da viagem. Fora disso, embarcava-se alguma cachaça, cuja utilidade oficial era a de medicamento em caso de picada de cobra. (⁴)
(1) Veja a postagem "Animais na História do Brasil (Parte 4): Churrasco de anta".
(2) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas vol. 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 117.
(3) A postagem "Cobras, lagartos e outros bichos - De que se alimentava a população das minas coloniais quando faltava comida" trata do assunto da falta de alimentos entre monçoeiros e mineradores.
(4) Jamais tente isso, leitor. Evite picadas de cobra, mas se isso acontecer, recorra imediatamente ao soro apropriado.
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