A escravidão, no Brasil, foi de indígenas e de africanos. Desumana, em um e outro caso, como só ela pode ser. Os indígenas tinham nos missionários jesuítas valentes defensores, que se opunham à sua escravização. Os cativos de origem africana, não. Por quê?
O padre Antônio Vieira (¹), em uma de suas cartas, escreveu que calvinistas e luteranos eram menos hereges que paulistas, porque "enforcam a quem furta e fazem pagar a quem deve, e a seita pauliniana [sic] tudo isto está devorando sempre sem escrúpulo." (²)
Só é possível compreender perfeitamente o que Vieira queria dizer se duas coisas forem consideradas em relação aos jesuítas que empreendiam a catequese no Brasil: o desgosto em relação à chamada "heresia protestante" e o ódio aos paulistas que escravizavam indígenas.
Não se deve pensar, entretanto, que a escravização da população nativa era fenômeno restrito a São Paulo. Em um documento atribuído a outro jesuíta, o padre José de Anchieta (³), pode-se ler esta observação, relacionada à Bahia e adjacências:
"[...] Já sabem [os indígenas] por todo o sertão, que somente gente que está nas igrejas, onde os padres residem, tem liberdade, que toda a mais é cativa (...)." (⁴)
Isso acontecia porque os missionários eram audazes em fazer frente aos colonizadores, quando o assunto era a escravização de indígenas ou qualquer outra ação que comprometesse sua catequese; em alguns casos, houve até rebeliões de colonos contra a presença da Companhia de Jesus, ao ponto de serem expulsos os padres, como aconteceu em São Paulo no ano de 1640.
Entretanto, observando o outro lado dessa história, veremos que a posição dos jesuítas em relação aos escravizados africanos e/ou de origem africana era muito diferente. Os próprios missionários tinham escravos a seu serviço, e não viam nada de errado em tal prática. Em uma carta enviada ao rei D. João III em 1551, o padre Manuel da Nóbrega (⁵) foi explícito em pedir escravos para o Colégio da Bahia:
"[...] Mande dar alguns escravos de Guiné à Casa [Colégio da Bahia], para fazerem mantimentos, porque a terra é tão fértil, que facilmente se manterão e vestirão muitos meninos, se tiverem alguns escravos que façam roças de mantimentos e algodoais [...]." (⁶)
Outro exemplo pode ser encontrado na sugestão feita pelo padre Antônio Vieira, tendo em vista a queixa persistente dos moradores do Maranhão, de que a catequese de indígenas resultava em falta de mão de obra para as lavouras:
"[...] Não podem haver ao presente outros meios mais certos e efetivos, que os de meter no dito Estado [do Maranhão] escravos de Angola [...].
[...].
Comprem e remetam ao Maranhão duzentos escravos, que devem ser homens e mulheres em ordem à propagação [sic] [...]." (⁷)
Como explicar a diferença no trato dos jesuítas com indígenas e africanos? Nos dois casos, a resposta está na catequese. Os missionários da Companhia de Jesus queriam os indígenas "livres", para que, reunidos em aldeias sob a vigilância dos padres, fossem submetidos a doutrinação. Entretanto, apoiavam a escravização de africanos porque entendiam que, vindo ao Brasil, estariam ao alcance da catequese. Por isso, houve até quem julgasse que, em última análise, a escravidão era um benefício que se fazia aos africanos...
Uma ideia de como era feita a doutrinação de escravizados, fossem eles indígenas ou africanos, pode ser obtida por esta descrição, proveniente de outro relato de Anchieta:
"O método que se adota nestas missões é ensinar e explicar a doutrina cristã aos índios e africanos reunidos em um lugar, batizar, ouvir-lhes as confissões, separá-los das concubinas e sujeitá-los às leis do matrimônio, o que nesta Província é trabalho quotidiano, necessário e utilíssimo à salvação das almas." (⁸)
A que conclusão chegamos, leitores? No que se refere à escravidão de africanos, por séculos houve bem pouca gente que atinasse com sua imoralidade, mesmo dentro de contextos estritamente religiosos. Nos chamados países protestantes, o movimento abolicionista precisou lutar contra quem, com base na Bíblia, defendia a manutenção da ordem escravista. Interessante é que a mesma fonte era citada por quem queria acabar de vez com a escravidão. Não foi diferente onde o catolicismo predominou (⁹), o que vale, certamente, também para o Brasil.
(1) 1608 - 1697.
(2) VIEIRA, Pe. Antônio S. J. Cartas vol. 2isboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 474.
(3) 1534 - 1597.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de S. J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 378.
(5) 1517 - 1570.
(6) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 307 e 308.
(7) VIEIRA, Pe. Antônio S. J. Op. cit. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, pp. 176 e 177.
(8) ANCHIETA, Pe. Joseph de S. J. Op. cit. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 399.
(9) Para quem tiver interesse no assunto, poderá ser útil correr os olhos por uma obrinha de muita importância, escrita por José Bonifácio de Andrada e Silva, e que tem por título A Abolição.
Veja também:
Quando os homens se convencem que dominam a verdade - o que é a verdade, afinal? - têm tendência a considerar que o resto do mundo está errado. Daí à intolerância é um passo.
ResponderExcluirÉ assim mesmo. Infelizmente.
ExcluirA gente vai à escola e isto nunca me apareceu. Soube de algumas coisas, mas um texto claro e sucinto como esse é a primeira vez.
ResponderExcluirBoa tarde, Adeli Sell, é para isso mesmo que existe o blog História & Outras Histórias rsrsrssssssssssssss...
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