Já imaginaram, leitores, se os políticos falassem sempre a verdade? Ou, quem sabe, se os comandantes militares, durante uma guerra, jamais ousassem proferir uma simples mentirinha? Suponham, agora, essa síndrome da verdade nas relações diplomáticas...
Durante uma batalha na Guerra do Peloponeso (foi Tucídides quem contou), Demóstenes teve a ideia de mandar os aliados messênios para a vanguarda das forças por ele comandadas, não porque fossem julgados mais aptos ou mais valentes que os demais soldados, mas porque seu dialeto, sendo o mesmo dos dórios a quem enfrentavam, tornaria possível enganar as sentinelas inimigas (¹). Mais da Guerra do Peloponeso: para Brasidas, um comandante espartano, as astúcias mais notáveis em uma guerra seriam aquelas que, causando o maior dano possível aos adversários, resultassem em máximo benefício para os aliados (²).
Uma mentira foi útil aos romanos quando quiseram conquistar a ilha de Creta. Aneu Floro, em Epitome rerum Romanarum, Livro III, afirmou: "A guerra de Creta, se admitirmos a verdade, nós [os romanos] a fizemos apenas pela cobiça de vencer aquela nobre ilha" (³). Mas era necessário um pretexto! Alegou-se que Creta era suspeita de haver favorecido Mitridates, rei do Ponto, na guerra contra Roma. Não passava de conversa fiada, mas, com base nela, proclamou-se a vingança. No decorrer dos combates, muitos cretenses, percebendo a derrota como inevitável, ingeriram veneno, porque eram devidamente conhecidas as consequências para os que caíam prisioneiros dos romanos.
Consta ter acontecido no Século XVII, durante a resistência à ocupação de Pernambuco por holandeses: o general Matias de Albuquerque, sabendo que, se a soldadesca desconfiasse que a pólvora estava por acabar, desertaria de vez, resolveu adotar um pequeno expediente, que Duarte de Albuquerque Coelho registrou em suas Memórias Diárias, informando que o comandante "somente tinha consigo dezesseis libras de pólvora, ainda que tinha quatro barris de areia a que os soldados faziam guarda, como se fossem de pólvora. Toda sorte de manha era necessária por estar em campo aberto tendo à frente um inimigo poderoso" (⁴). Mais tarde, com a maré da guerra se movendo a favor dos luso-brasileiros, outro comandante adotou o seguinte disfarce, com a intenção de fazer crer aos inimigos que seus comandados eram portugueses treinados para a guerra, e não grupos de indígenas sem prática de combate segundo os preceitos usuais entre europeus: "[...] mandou intrometer entre os soldados brancos muitos índios com chapéus e carapuças, para que parecessem todos portugueses. O que visto pelos holandeses, e a resolução dos nossos, levantaram bandeira de paz e se entregaram com artilharia, mosquetes, escravos e mais fazendas [sic], que havia na fortaleza, que de todo foi arrasada" (⁵).
Vejam, meus leitores, que mentiras e outras trapaças sempre foram admitidas, e até elogiadas, se fosse para vencer uma guerra. Por quê? Ora, porque muitas vezes funcionavam. A ética da verdade, tão valorizada nos tempos de paz, conforme ensinada às crianças e que se esperava dos cidadãos de bem, era abandonada nos campos de batalha. Como contrapartida, o engano empregado para vencer o inimigo, defender ou conquistar território e capturar um rico botim era glorificado como virtude, até sob a alegação de que poupava vidas. Vocês acham que mudou alguma coisa em nosso século?
(1) Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro III.
(2) Ibid., Livro V.
(3) FLORO, Aneu. Epitome rerum Romanarum, Livro III. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860.
Veja também:
Na Província do Grão-Pará no ano seguinte da Independência teve a mentira de John Grenfell, contratado por Dom Pedro I, para fazer a região aderir à Independência. Ameaçou a elite política de Belém com uma frota fortemente armada que estava cercando a cidade. Aceitaram a soberania de Dom Pedro e o Brasil Independente, mas no fim Grenfell estava mentindo.
ResponderExcluirExemplo perfeito!
ExcluirNos exemplos que deu não era a verdade que estava em causa, mas simples estratégia. Se me permite, a verdade é uma coisa muito mais profunda.
ResponderExcluir(Admito contraditório, como é óbvio)
Um abraço, Marta :)
Existe apenas uma verdade? Ou haveria uma verdade para cada lado em contenda, manipulada conforme a conveniência? Será que existe uma "verdade patriótica", ou melhor, uma "mentira patriótica", fantasiada de verdade, sempre que uma boa causa estiver disponível como justificativa?
ExcluirHaha, estou indo longe demais. É claro que concordo com a ideia de uma verdade mais profunda, para além das verdadezinhas e mentirazinhas do quotidiano. É na busca de tal verdade que ainda se encontra muito do sentido da vida, nesse mundo louco em que, muito além de nossa capacidade de escolha, estamos vivendo.
Seriam também mentiras. Aristóteles e Santo Agostinho definiriam como mentiras, e Santo Agostinho condenaria - já que mesmo uma mentira para salvar uma vida lhe era oposição da verdade a ser evitada.
ExcluirNo Natal passado alguém me presenteou um livro, biografia de um jovem holandês que, durante a Segunda Guerra Mundial, ajudou centenas de judeus que tentavam fugir para a Suíça, país neutro. Segundo o biógrafo, o rapaz, que tinha fortes convicções religiosas, enfrentava, ao longo de suas arriscadíssimas jornadas, um conflito íntimo severo, já que, para auxiliar as famílias judias em fuga, precisava usar documentos falsos, para si mesmo e para elas. Ora, documentos falsos são, a rigor, mentiras impressas. Como Aristóteles e Agostinho de Hipona
ResponderExcluirse posicionariam diante de uma situação tal qual essa? Algumas "não verdades" não seriam inevitáveis? É apenas uma pergunta, não um ponto de vista.
Saindo um pouco da questão da mentira, mas ainda no plano da moral e da ética, consideremos o caso daqueles que tentaram eliminar o líder supremo do Partido Nazista. Na hipótese de que houvessem obtido sucesso, não teriam eles feito um grande favor à Alemanha e ao mundo? Falo, naturalmente, de gente como Dietrich Bonhoeffer, von Stauffenberg e muitos outros, cujo único “pecado”, se assim se pode dizer, foi o fracasso de seus planos. Isto posto, A. C. e Wendell, arrisco emitir uma opinião pessoal (algo incomum neste blog, que quero sempre técnico), que vai na forma de pergunta: Não seria razoável aceitar que existe uma ética própria dos dias calmos, quando até se pode deitar em uma rede e tomar um suco gelado, e outra apenas compatível com as situações extremas, sendo a guerra uma delas?
Civilizada e democraticamente, deixo a vocês o direito de concordarem. Ou não. Hahaha, o modo como escrevi já é dúbio...
Eu tratava somente da questão de ser ou não mentira. Acredito que os objetivos ou resultados independem para compreender algo como mentira (na realidade a questão da mentira é algo que estou refletindo e lendo há algum tempo, até para pensar o movimento Pós-Estruturalista na academia - que não acredita na existência de uma verdade, mas que a realidade se constrói a partir do discurso).
ExcluirAté o momento discordo de que a mentira não pode nunca ser utilizada. Existe um dilema filosófico sobre isso que é o do "assassino à porta". Alguém se esconde em sua casa fugindo de um assassino. O assassino aparece e pergunta se a pessoa está em sua casa. Utilizar a mentira ou contar a verdade frente a indagação sobre o real? A resposta poderia ser mentir, mais prática. Ou, algo que também poderia ser considerado, omitir e suportar as consequências.
Mas realmente é uma questão muito interessante.
Toda verdade pode e/ou deve ser dita?
ExcluirExemplo excelente, Wendell. Assunto para debate sem fim...