Expedientes fraudulentos no apresamento de índios para escravização
Se os colonizadores que viviam no Brasil praticavam fraudes cabeludas em suas relações comerciais (veja postagem anterior), não seria razoável supor que, no trato com os povos indígenas, agissem segundo maior lisura. Pelo contrário.
A ideia que em geral se tem de brancos e/ou mamelucos aprisionando índios para a escravidão é a dos ataques brutais às reduções nas quais padres praticavam a catequese. Desarmados, esses índios podiam oferecer muito pouca resistência aos seus algozes, e é fato que ataques assim aconteciam e não eram raros. Mas não eram a única forma de aprisionar índios e obrigá-los a trabalhar de graça, nem eram apenas paulistas os que se aventuravam sertão adentro para "descimento do gentio" ou buscar o "remédio do sertão", como então se usava dizer. A fraude era, também, uma rotina, e Frei Vicente do Salvador fez dela uma relato pungente.
Antes de mais nada, por questões formais, era preciso obter das autoridades uma permissão para o apresamento. Esta se dava, igualmente formal, para os casos de índios que faziam guerra aos colonos e se recusavam a receber a catequese. Hipocritamente, era a chamada "guerra justa". A partir daí, os interessados na captura de ameríndios agiam com astúcia, de preferência a pegar em armas. Algum mameluco que bem sabia a língua dos índios era enviado a "negociar a paz" e, conforme explicou Frei Vicente do Salvador, "ordinariamente bastava a língua do parente mameluco, que lhes representava a fartura do peixe e mariscos do mar, de que lá careciam (¹), a liberdade de que haviam de gozar, a qual não teriam se os trouxessem por guerra." (²)
Em suma, a proposta era simples: aceitar a escravidão (pintada como favorável), ou encarar a guerra. Os índios eram valentes, mas a essa altura já tinham conhecimento de que suas armas pouco podiam contra as dos colonizadores.
A tática funcionava. O engano prevalecia. Segue Frei Vicente do Salvador:
"Com estes enganos, e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos principais, e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em cordas para os comerem [sic!], abalavam aldeias inteiras, e em chegando à vista do mar, apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos, e ainda às vezes a mulher do marido, levando uns o capitão mameluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que impetraram a licença e alguns os vendiam [...]." (³)
Tudo isso tão cristãmente...
O caso é que esses índios, do ponto de vista legal, não eram exatamente escravos. Podia-se requerer deles apenas trabalho, mas não eram mercadoria, e quem com eles ficava sabia disso e o declarava ao recebê-los. Entretanto, havia um subterfúgio muito empregado para mergulhá-los de vez na escravidão:
"...quem os comprava, pela primeira culpa ou fugida que faziam, os ferrava na face, dizendo que lhe custaram seu dinheiro, e eram seus cativos; quebravam os pregadores os púlpitos sobre isto, mas era como se pregassem em deserto." (⁴)
Indígenas aprisionados, de acordo com Debret (⁵). Chama a a atenção o fato de Debret ainda ter visto tal horror na primeira metade do século XIX! |
(1) Isto quando se ia fazer apresamento no interior da Colônia.
(2) História do Brasil, c. 1627.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
Veja também:
Para entender e também conhecer um pouco mais a respeito dos ataques às missões, é mister ler essa tese a partir da página 107:
ResponderExcluirhttp://www.catedra-alberto-benveniste.org/_fich/17/TESE_MARCELO_MEIRA_AMARAL_BOGACIOVAS.pdf
Então, fica aí a sugestão para os leitores que tiverem interesse no assunto.
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