É um daqueles casos que, se não resolvem nenhuma das questões propostas pela "Grande História", ao menos servem muito bem para humanizar o estudo e a compreensão do modo como viviam os que foram antes de nós. Secundariamente, não deixa de ser uma boa ilustração da proverbial sagacidade dos gatos.
Assim, sem mais delongas, vamos à aventura felina contada por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista, no Novo Orbe Serafico Brasilico. Tudo começou quando um novo guardião, sem nenhuma estima por gatos, foi designado para o "Convento da Alagoa":
"Há poucos anos foi das partes da Bahia para este Convento da Alagoa por seu guardião certo religioso. Assim como chegou, ou para divertimento do trabalho do governo, ou para experiências de uma escopeta que levou consigo [sic], entrou a dar fogo nos gatos que havia na casa, e seria talvez em despique de alguma ceia, que lhe haveriam tirado à ligeireza da unha. Matou um ou dois, mas nos outros foi tal a advertência do seu natural instinto, que não apareceram mais de dia, nem ainda de noite aonde o Guardião os pudesse ver. [...]" (¹)
Havia, porém, um religioso, frei Manoel da Cruz, que, franciscanamente, amava os gatos, com especial devoção a um deles, a quem acolhia em sua cela para lhe dar algum petisco. Ora, o dito bichano, ciente do que fazia o guardião, passou a sumir nas horas claras, e mesmo sendo já noite, enquanto o desalmado gaticida não ia dormir. Depois disso, porém... Continua Jaboatão:
"[...] tanto que era noite, e o guardião estava recolhido, saía o gato do seu esconderijo, vinha à cela do seu benfeitor, tomava a ração e se retirava até o outro dia às mesmas horas. [...]" (²)
Não pensem, leitores, que a gatice acabou aqui. As idas e vindas felinas teriam durado um ano e meio, tempo que o guardião avesso a miados permaneceu no convento. Mas um dia, afinal, foi embora, e deixo que Jaboatão conclua a história, ficando a critério de quem lê acreditar ou não:
"[...] O mais notável deste caso foi, que no dia de manhã, em que o guardião despedido do convento se foi embarcar em uma canoa na praia à porta do carro do mesmo convento, entrou nele este gato com alguns mais, e não tornaram a sair, nem a esconder-se." (³)
(1) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, p. 612.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
Veja também:
Um final didáctico, cultivado por muitos autores. mas um final de que se gosta.
ResponderExcluirMarta, onde é que, normalmente, procura a s suas fontes históricas? Em arquivos? Em bibliotecas? Em...
Fique bem. Deixo-lhe um sorriso :)
:-)))) Fontes vêm de arquivos, bibliotecas (reais e virtuais), entrevistas, visitas a locais historicamente interessantes, biblioteca e arquivo próprios, que venho cultivando desde muito jovem, hemerotecas (também reais e virtuais)... A lista vai longe. Às vezes, uma conversa aparentemente amena, com amigos e/ou colegas, fornece uma ideia interessante, até mesmo conversa alheia, que ouço na rua (não agora, por causa do isolamento social). Aí busco documentos, vou construindo um banco de dados (seria impossível trabalhar sem isso). Há posts que esperaram anos para que fossem completamente escritos, porque faltava algum documento que teimava em não aparecer. O resultado é este blog, que nunca está pronto, nem pode estar rsrsrsrrsssss
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