quinta-feira, 16 de abril de 2020

Familiares do Santo Ofício

Tácito, autor romano, escreveu, tratando do governo do imperador Tibério: "Assim os delatores, uma espécie de homens que existem para desgraça pública e que nunca são satisfatoriamente punidos, eram aliciados com prêmios" (¹). Ao que parece, muitos séculos após a queda do Império Romano, o Tribunal do Santo Ofício percebeu que, para seus propósitos investigativos, era conveniente contar com indivíduos dessa espécie descrita por Tácito, e deu a eles o título de "familiares do Santo Ofício".
Em termos práticos e claros, os familiares do Santo Ofício eram bisbilhoteiros que tinham a confiança dos inquisidores, e andavam, por conseguinte, a investigar a vida alheia, para denunciar suspeitas de heresia que pudessem interessar ao inquisidor de plantão. 
Ser familiar, porém, era garantia de status, porque, para isso, era preciso passar por uma investigação quanto à "limpeza de sangue", outra infame mania da época. Isto posto, esse indivíduo de sangue imaculado entrava no exercício de funções diversas, conforme as circunstâncias requeressem, além de, em Portugal e seus domínios - incluindo o Brasil, portanto - desfrutar de uma gama de privilégios, que o isentavam de muitas obrigações ordinariamente impostas à gente "comum", conforme estipulado por uma Carta Régia de 1562, que, como se vê pela data, foi expedida no reinado do muito famoso rei Dom Sebastião.
Em nosso tempo, semelhante fofoqueiro oficial pareceria, talvez, digno da máxima execração, mas quando a Inquisição estava no auge, o título de familiar era reputado honroso, como se infere por esta menção na Nobiliarchia Paulistana (escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme), ao tratar de certo homem chamado João Vieira da Silva, casado com dona Bernarda de Almeida: "[...] João Vieira da Silva, natural da freguesia de S. Jorge de Lima de Selheiro, termo de Guimarães. Tomou juramento de familiar do Santo Ofício em São Paulo a 7 de janeiro de 1766 por carta passada em Lisboa a 16 de janeiro de 1764, registrada no livro 18 a 19 do dito mês pelo secretário André Cursino de Figueiredo". Levando em conta que a Nobiliarchia inclui uma enxurrada de elogios aos seus "nobres", presume-se o quanto um indivíduo desses deveria andar de nariz empinado e, talvez, ser temido, mesmo em São Paulo, onde a Inquisição não era bem-vinda (²).

(1) TÁCITO. Annales, Livro IV. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Missionários jesuítas, em confronto com paulistas aprisionadores de índios, ameaçavam-nos com a Inquisição. Para burla geral, os religiosos foram lembrados de que o inquisidor, se ousasse ir à vila, seria lançado serra abaixo, ao intentar a escalada do áspero Caminho do Mar.


2 comentários:

  1. Os poderes sempre se serviram de artifícios vários para controlares os seus governados.
    Marta, pode crer que no nosso tempo também existem esses "familiares", só que duma forma muito mais dissimulada.

    Tenha uma boa semana e... cuide-se!

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    1. Não tenho dúvida de que os "familiares" mudaram de ofício (não é um trocadilho), mas continuam por aí. Ganharam até reforço eletrônico...

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