quinta-feira, 9 de abril de 2020

Domiciano, "nosso senhor e deus"

Ao ditar um documento oficial, o imperador Domiciano começou: "Nosso senhor e deus assim ordena..." Falava de si mesmo, é claro. Que audácia! E, de acordo com Suetônio (¹), desde então ficou entendido que competia a todos chamá-lo por esse modo, quer de viva voz, quer por escrito. 
Domiciano era filho de Vespasiano e irmão de Tito, imperadores precedentes. Esteve à frente do Império entre os anos 81 e 96 d.C., época em que tratou de centralizar o poder, afastando o Senado, tanto quanto possível, da esfera decisória. Ao menos nas aparências, foi um adepto decidido das antigas tradições romanas, inclusive no que tange à religião - fazendo-se incluir no conjunto de divindades que deveriam ser adoradas.
Augusto, imperador entre 27 a.C. e 14 d.C., não só recusou ser chamado "senhor", como proibiu que o mesmo tratamento fosse dado a seus familiares (²). Entende-se que o Império, em seu tempo, era algo novo, e dificilmente Augusto se sentiria seguro e confortável para receber um título que remetia ao panteão de deidades. Os romanos tinham ódio à realeza, suprimida entre eles para dar lugar à República, e não era conveniente oferecer a mais tênue impressão de que pretendesse ser rei. 
Não obstante, depois da morte, Augusto passou a ser honrado como "divo", e, portanto, contado entre os deuses. O mesmo sucedeu com outros imperadores. A Tibério, seu sucessor, ofereceu-se a condição de deus em vida, pretendendo-se, para isso, o estabelecimento de templos e sacerdócio específico; contudo, o imperador recusou tal honra, e, ainda conforme Suetônio (³), somente permitiu que lhe dedicassem estátuas que não fossem colocadas em recintos consagrados a práticas religiosas. Aliás, foi além, recusando mesmo ser chamado "Imperator" e "Dominus".
Imperador Domiciano (⁵)
Mas veio Calígula, e, com ele, a deificação do imperador vivo ganhou força. Fez substituir a cabeça de deuses pela sua em esculturas gregas (⁴), e, colocado entre Castor e Pólux, admitiu ser cultuado. O caminho estava limpo para que, alguns imperadores mais tarde, Roma aceitasse sem muito questionamento que Domiciano exigisse o título de "senhor e deus". Para os romanos que, por esse tempo, viam na religião apenas uma prática tradicional e/ou um dever patriótico, a mania do imperador metido a deus talvez não soasse coisa muito ofensiva. Para as minorias adeptas de outros conceitos religiosos, a situação era difícil e até perigosa. A recusa em reconhecer a divindade do imperador ou em oferecer sacrifícios aos deuses por sua prosperidade e longevidade podia resultar no confisco dos bens (⁶) e na sentença de morte.

(1) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro VIII. 
(2) Ibid., Livro II.
(3) Ibid., Livro III. 
(4) Ibid., Livro IV.
(5) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. 
Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 220. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(6) Uma prática nada incomum em Roma, sempre que imperadores perdulários procuravam um pretexto para refazer as finanças debilitadas. Afirma-se que Calígula, por exemplo, não precisou de mais de um ano para gastar toda a fortuna acumulada por Tibério, seu antecessor.


2 comentários:

  1. Uma história de sempre, que não dignifica o ser humano: o poder inebria, dando azo a todos os atropelos. Talvez seja por isso que, na maioria das democracias, haja limitação de mandatos.

    Continuação dum bom dia, Marta! :)

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    1. Acho que não pode mesmo haver verdadeira democracia sem limitação de mandatos. A experiência tem mostrado os resultados ruins de muitos mandatos para uma só pessoa, ainda quando todos vêm do voto popular.

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