O episódio, contado por Sebastião da Rocha Pita em sua controversa História da América Portuguesa (¹), ocorreu em 1724, quando Vasco Fernandes César de Meneses exercia o cargo de vice-rei do Brasil. A sede de seu governo era, ainda, a Cidade da Bahia, a que hoje chamamos Salvador.
Foi o vice-rei percorrer algumas povoações das redondezas e, ao chegar a Maragogipe, ouviu dos moradores uma reclamação e um pedido. Primeiro, a reclamação: Maragogipe era subordinada à Vila de Jaguaripe, e era lá, portanto, que deviam ser resolvidas as questões relacionadas à Justiça. Jaguaripe, porém, alegavam eles, era muito distante... Veio, então, o pedido: para resolver o problema, os moradores de Maragogipe queriam que sua povoação (cuja principal atividade econômica era a produção de farinha de mandioca), fosse elevada a vila.
O vice-rei considerou o caso e, após verificar que em nada haveria prejuízo para a Real Coroa, houve por bem atender à vontade da gente de Maragogipe. Mais do que satisfeitos, os moradores de Maragogipe resolveram homenagear o vice-rei com um presente algo inusitado. Conta Rocha Pita:
"Agradecidos os vizinhos de Maragogipe por este benefício, lisonjearam o vice-rei com a galanteria de dois mil alqueires de farinha, postos pelas suas embarcações na cidade, por ser o gênero essencial da sua cultura." (²)
Todo mundo sabe que, no Brasil, a medida do alqueire era variável (³), mas, independente disso e aceitando que o relato de Rocha Pita não contenha exagero, o presente foi, de fato, generoso, e, se essa foi mesmo a ordem dos acontecimentos, não se pode dizer que houve uma tentativa de suborno. Com a atitude esperada de um administrador que governava o Brasil em nome de El-Rei, o vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses recebeu o donativo, que foi encaminhado para uso público:
"Ele os aceitou [os dois mil alqueires de farinha] para o sustento dos soldados e artilheiros do presídio (⁴) da Bahia, ordenando os recebesse o almoxarife a quem toca a distribuição deste pão de munição da infantaria, e poupando [...] tão oportuno donativo muita despesa." (⁵)
Malgrado andar já o Brasil às voltas com a exploração aurífera, parece que o tesouro colonial não estava em muito boa situação, ou Rocha Pita não faria menção à poupança que o presente de Maragogipe significou para o erário público - que o digam as nada incomuns sedições da soldadesca, que às vezes ficava quase um ano sem ver uma só moeda do pagamento que lhe era devido.
(1) Controversa, sim, pelo teor altamente encomiástico, e também por conter muitos erros, conforme diziam Pedro Taques de Almeida Paes Leme e Frei Gaspar da Madre de Deus, paulistas. A primeira edição da História da América Portuguesa apareceu em 1730.
(2) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 327.
(3) Quarenta litros em São Paulo, oitenta em Minas Gerais. Não havia uniformidade.
(4) Eram denominados "presídios" os quartéis, fortalezas e outros locais de uso militar no Brasil Colonial.
(5) PITA, Sebastião da Rocha. Op. cit., p. 327.
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