Eu poderia ter levantado os dados em muitos outros jornais da época, mas escolhi este pela facilidade do acesso ao acervo digitalizado do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Trata-se da edição de terça-feira, 5 de fevereiro de 1867 do Correio Paulistano. Como na maioria dos jornais, há uma seção, nesse caso na página 4, dedicada a anúncios, e dois deles chamam a atenção - estão bem próximos, quase ao lado um do outro.
Vejamos o primeiro. Trata-se de um animal de carga que fugiu e que o dono deseja recuperar, oferecendo uma recompensa. Transcrevo o texto, na ortografia atual:
50$ DE GRATIFICAÇÃO
Fugiu de um pasto da freguesia do Brás uma besta grande e nova, ferrada dos quatro pés, de cor vermelha, tem sinais de pisadura sobre o lombo, e as orelhas muito grandes que costuma derrubar, dá pelo nome de Boneca, e é muito mansa.
Quem achar e levar à rua nova de S. José n. 1 será gratificado com a quantia acima."
Está aí uma leitura altamente edificante para quem acha que "as coisas são como sempre foram". Ajuda a refletir sobre o modo de vida em São Paulo no século XIX. Mas não é essa a razão pela qual transcrevo o texto. Vamos ao segundo anúncio que, como já disse, aparece na mesmíssima página de jornal, quase ao lado do primeiro:
Gratifica-se generosamente a pessoa que apreender o escravo mulato de nome Belisário, pernambucano ou baiano, idade 20 anos, principiando a buçar, e poucos fios de barba, tem um sinal branco no tornozelo do pé esquerdo.
Este escravo fugiu de Itu a José Galvão de França Pacheco Junior no dia 25 de janeiro próximo passado, e foi encontrado no dia 29 na Varginha em direção para São Paulo, trazendo camisa de chita e calça de casimira, e cobertor francês branco. Poderá ser entregue em Itu ao dito José Galvão ou em São Paulo aos senhores Redondo e Coelho na Rua do Comércio n. 42, que se satisfará a gratificação."
Imagino que você, leitor, esteja estarrecido diante das semelhanças entre os dois anúncios, como nome do fujão, referências à idade, sinais particulares e o oferecimento de uma recompensa. No caso do escravo, era importante classificá-lo como baiano ou pernambucano, pois o tráfico de africanos, proibido "de mentirinha" em 1831, fora efetivamente banido em 1850. Fica evidente que, para muitos dos contemporâneos, animais de carga e humanos escravizados eram mais ou menos a mesma coisa, ou seja, máquinas de trabalhar, que constituíam propriedade de alguém e cuja fuga, portanto, representava prejuízo. Daí estipular-se uma recompensa, a fim de favorecer a captura e a devolução.
É fato notório que este não foi um caso isolado. Quem se der ao trabalho de pesquisar em outros jornais encontrará uma chuva torrencial de anúncios semelhantes, ensejando a óbvia constatação de que a prática de assemelhar escravos a bestas de carga de modo algum ofendia a opinião pública. Para dizer bem claramente, as pessoas estavam acostumadas a isso. Chegamos, portanto, à reflexão final: hoje, o tratamento desumano dispensado aos escravos nos parece uma aberração, mas não estaremos nós, em nossos dias, tolerando absurdos tão grandes quanto e aos quais nos acostumamos ao ponto de termos perdido a capacidade de reconhecê-los?
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