Ser escravo nunca foi fácil, mesmo quando movimentos abolicionistas passaram a questionar a legitimidade da apropriação do trabalho de um ser humano por outro, lutando para, em definitivo, extirpar tamanha injustiça. Imaginem, então, leitores, qual seria a condição dos cativos quando a escravidão era vista como a coisa mais "natural" deste mundo!...
Voltemos no tempo. No Século XVIII a.C. um rei da Babilônia, chamado Hamurabi, colocou em vigor um Código que, entre muitos outros assuntos, tratava de disciplinar (¹) a escravidão. Como em quase tudo o mais que existia no Código, as penalidades que envolviam cativos eram terríveis. O exemplo seguinte comprovará o quanto isso é verdade:
"Se um escravo disser a seu senhor: Você não é meu senhor! Se ele for culpado, seu senhor lhe cortará uma orelha."
Que tal, leitores? Sem mais delongas, tratemos de considerar quatro aspectos das leis de Hamurabi relacionadas à escravidão.
I. Punição para quem acolhia um escravo fugitivo
"Se alguém receber em sua casa um escravo fugitivo, quer seja propriedade da corte real ou de um homem livre, e não o apresentar para restituição quando for feito o aviso de fuga, o dono da casa será condenado à morte."
Notem, leitores, que havia pelo menos duas questões envolvidas. A primeira delas é que alguém podia ficar com um escravo fugitivo em casa para mantê-lo na condição de cativo, e isso caracterizaria furto de algo que era propriedade de outra pessoa; a outra questão possível é que era crime facilitar a fuga de escravos, porque atentava contra a ordem social vigente. Será útil acrescentar que, caso alguém capturasse um escravo fugitivo, ao devolvê-lo devia ser recompensado com certa quantidade de prata - nesse tempo ainda não havia dinheiro amoedado.
II. Punição para quem feria um escravo
No Código de Hamurabi imperava a chamada "lei de talião", ou seja, o ofensor devia, tanto quanto possível, ser punido exatamente com a mesma ofensa que praticara. Tal princípio, porém, não era válido quando envolvia um escravo, que, como mercadoria, era avaliado apenas por seu preço. Esse ponto pode ser satisfatoriamente entendido se considerarmos o que acontecia quando dois homens livres brigavam e, com um golpe, um deles feria o outro no olho, deixando-o cego. Neste caso, o agressor era condenado a também perder a visão (o método usual para isso era arrancar um olho), valendo a mesma regra em caso de outras lesões. Todavia, se a pessoa agredida era um escravo, a lei prescrevia coisa diferente:
"Se um homem livre golpear um escravo, de modo que fique cego, ou quebrar um osso de um escravo, deverá pagar [ao senhor] a metade do valor do escravo."
A interpretação óbvia é que a lesão diminuía a capacidade de trabalho do escravo e, portanto, era o senhor que deveria ser indenizado.
III. O que acontecia aos filhos de um homem livre com uma mulher escrava
A esta altura, os leitores talvez imaginem que, no Código de Hamurabi, todas as leis eram brutais. Mas não era assim, se a comparação acontecer em relação a outros códigos da Idade Antiga. Sim, havia traços de humanidade... Era o que ocorria quando um homem de condição livre tinha filhos com uma escrava que lhe pertencia. Eles somente teriam direito aos bens deixados pelo pai se, ainda em vida do senhor, fossem reconhecidos como seus filhos; porém, ainda que isso não acontecesse, por ocasião da morte do pai, tanto a escrava como os filhos seriam, de imediato, postos em liberdade (²).
IV. Situação de pessoas nascidas livres que eram temporariamente vendidas como escravas em consequência de dívidas
O Código de Hamurabi estipulava:
"Se um homem não conseguir pagar suas dívidas e precisar vender-se a si mesmo, ou sua mulher, filho ou filha para trabalhos forçados, então trabalharão durante três anos na casa daquele para quem forem vendidos, e no quarto ano serão postos em liberdade."
Embora essa lei pareça abominável em nosso tempo, era bastante suave, se comparada ao que estipulavam outros códigos da Antiguidade. Levava em conta que as pessoas escravizadas por dívidas haviam nascido livres e, portanto, não admitia que servissem perpetuamente.
(1) Se é que cabe aqui tal palavra.
(2) Comparem, leitores, com o que ocorria, no Brasil, em relação aos filhos de um senhor com sua escrava.
(1) Se é que cabe aqui tal palavra.
(2) Comparem, leitores, com o que ocorria, no Brasil, em relação aos filhos de um senhor com sua escrava.
Veja também:
Só mesmo o História & Outras Histórias para me fazer resgatar dos recônditos da memória o código de Hamurabi. Há décadas que não ouvia falar dele. Faz sentido legislar sobre um assunto do qual dependia a produção de um país/reino, por muito tenebroso que seja o assunto.
ResponderExcluirP.S. Já a estou a seguir no Twitter também
Sim, em um código que ia a detalhes da vida quotidiana, regras quanto à escravidão não poderiam estar ausentes. Ruim como fosse, a escravidão não era proibida, mas era, pelo menos, limitada por leis.
ExcluirMarta,
ResponderExcluirA coisa assim, à luz dos nossos dias, parece uma barbárie. Contudo, no contexto da época, o Código de Hamurabi foi o despoletar para uma nova visão sobre as relações humanas. Demorou muito tempo, pois demorou - diga-se, a propósito, que a tarefa está longe de estar acabada - até as pessoas aceitarem o conceito de igualdade. Recordo, a propósito, que o sucesso do Cristianismo teve muito a ver com a desigualdade de condição, surgindo como fonte de esperança.
Seja como for, é sempre bom recordar o percurso dos homens. É que, pelo andar da carruagem dos novos tempos, a memória parece ser coisa para esconder debaixo do tapete.
Um bom domingo :)
Só o fato de haver uma lei escrita já era um enorme progresso, não é? Conforme sabemos, as sociedades antigas, de um modo geral, não buscavam a igualdade. Em muitos casos, as leis justificavam a desigualdade, e nem é preciso ir tão longe no tempo para notar tal fato (a compilação das Ordenações do Reino, do começo do Século XVII, é um exemplo disso).
ExcluirNão sei se estamos melhorando, nesse aspecto, tanto quanto gostaríamos. Há leis que, teoricamente, asseguram igualdade de direitos, e há muito debate sobre a questão. O problema é "mudar a cabeça" das pessoas :-)))
Achei excelente seu último post, que li ontem à noite.
Tenha uma ótima semana!!!