quinta-feira, 15 de junho de 2017

Missões jesuíticas na América do Sul

O que eram as missões estabelecidas por jesuítas no Continente Americano? O padre Antonio Ruiz de Montoya, que trabalhou no Paraguai durante o Século XVII, explicou que, notando os missionários que os indígenas viviam dispersos em pequenas aldeias, trataram de conduzi-los "a povoações grandes e à vida política e humana e a beneficiar algodão para se vestirem, porque comumente viviam desnudos, ainda sem cobrir o que a natureza ocultou" (¹).
As missões organizadas no Brasil, geralmente não muito distantes do litoral, tinham uma estrutura bastante simples, de acordo com o que as circunstâncias permitiam. Sabemos, por relato do padre Simão de Vasconcelos, que havia dois tipos básicos de missões:
"Duas sortes há de missões: umas se fazem correndo as aldeias dos índios já batizados ou catecúmenos, reduzidos a elas e doutrinados aí pelos padres. Outras se fazem caminhando ao interior das brenhas cento, duzentas e mais léguas, trazendo delas bandos de bárbaros, para torná-los exércitos de Cristo." (²)
Na percepção dos missionários, a proximidade dos colonizadores era, porém, um problema muito sério. Motivo? O mau exemplo que davam aos catecúmenos, que logo aprendiam, por observação, que entre os cristãos professos podia haver uma enorme diferença entre dizer e fazer. Foi exatamente por isso que, no interior do Continente, em áreas que hoje pertencem, por exemplo, ao oeste dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e em outros países, como o Paraguai e a Argentina, os jesuítas resolveram fundar missões a uma razoável distância das vilas coloniais. Aí desenvolveram uma estrutura complexa de povoamento e catequese, que, no entender de alguns, tendia a ser, em algum momento no futuro, um verdadeiro império jesuíta na América (³).
Nesse cenário, cada missão era uma cidade em miniatura, muito limpa e organizada, sob o comando de jesuítas, mantendo, ao menos na aparência, algo da antiga ordem social indígena, na medida em que um cacique era também reconhecido como autoridade civil. Segundo explicação de Ayres de Casal, "cada uma das reduções, por outro nome missões, era uma considerável ou grande vila, e todas por um mesmo risco com ruas direitas e encruzadas em ângulos retos; as casas geralmente térreas, cobertas de telha, branqueadas, e com varandas pelos lados para preservarem do calor e da chuva, de sorte que vendo-se [sic] uma, se forma ideia verdadeira das outras. Em cada uma só havia a Igreja Matriz, todas geralmente de pedra, magníficas, elegantes, de naves, e ricamente ornadas, algumas inteiramente douradas. Um vigário e um cura, ambos jesuítas, eram os únicos eclesiásticos, e suficientes para exercer todas as funções paroquiais, sendo ainda os inspetores em toda a economia civil, debaixo de cuja direção havia corregedores eleitos anualmente, um cacique vitalício e outros oficiais, cada um com sua inspeção e alçada". (⁴) 
É óbvio que, aceitando viver nas missões, os indígenas tinham de pôr de lado a maior parte de suas antigas tradições. Passavam a usar um vestuário padronizado, tinham hora definida para todas as atividades e qualquer prática poligâmica era completamente banida. As crianças frequentavam a escola, havia aulas de música, pintura e escultura, os adultos aprendiam ofícios mecânicos e técnicas de agricultura, todos deviam comparecer à "doutrina" (catequese) e os faltosos eram punidos. A imposição desse estilo de vida aos indígenas tem recebido críticas, uma vez que, sob a estrita tutela dos padres, os indígenas perdiam a autonomia e já não podiam tomar as próprias decisões, até mesmo quanto a questões corriqueiras do quotidiano. Por outro lado, é inegável que os missionários tinham por seus catecúmenos um afeto imenso. Estavam dispostos a morrer por eles, se necessário. Quando paulistas apareceram em sua área (⁵), devastando missões para escravizar indígenas, houve padres que se dispuseram a acompanhar os infelizes prisioneiros até São Paulo, a fim de protestar junto às autoridades sobre a injustiça que se cometia. Desnecessário é dizer que não foram atendidos.

(1) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 162.
(3) Quando os jesuítas foram expulsos em 1768, uma das acusações frequentes que lhes faziam era de que estariam arquitetando um plano vastíssimo de estabelecimento de uma espécie de "império teocrático" no coração do Continente Americano. Tal acusação jamais foi efetivamente comprovada.
(4) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica,  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, pp. 159 e 160.
(5) Essa primeira aparição de uma bandeira de apresamento em território das missões do Guayrá aconteceu em 1628.


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2 comentários:

  1. A missão desses jesuítas, a crerem nela, deve ter sido deveras empolgante, pois tinham (tiveram) ali uma oportunidade única de colocar em prática aquilo em que acreditavam. A desilusão veio depois.

    Um bom final de semana, Marta :)

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    1. Mesmo que tenham cometido erros, não tenho dúvidas de que acreditavam no que faziam. Por que outro motivo arriscariam a pele em situações tão adversas?

      Tenha um ótimo final de semana, também!

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