"Nasceram mais livres que nós, senhores absolutos das terras em que Deus os pôs..."
Padre Antônio Vieira, em carta de 5 de agosto de 1684
Quando fazemos alguma viagem, procuramos ter, com antecedência, o máximo de informações sobre o local de destino. Consultamos sites, olhamos fotos e vídeos, recorremos a mapas, se necessário. E, é bom que se diga, tudo isso hoje é muito fácil, em quase qualquer lugar do mundo. Mas nem sempre foi assim.
No Século XVI, quando um europeu resolvia correr o risco de uma viagem marítima para fora de seu Continente, dificilmente sabia o que é que haveria de encontrar. Os mapas eram imprecisos e mesmo navegadores experientes tinham problemas em determinar com exatidão o lugar em que se encontravam. Tudo o que havia ao redor era a água do mar e, muito longe, o céu estrelado. Ah, naturalmente quando as estrelas, incluindo o sol, eram visíveis. Caso contrário, os problemas eram muito maiores.
Jean de Léry era ainda bastante jovem quando atravessou o Atlântico e, mergulhado em ideais religiosos, veio viver por quase um ano na França Antártica, uma colônia que calvinistas franceses tentaram em vão estabelecer na América do Sul, em área do atual Estado do Rio de Janeiro. Como os franceses tinham um bom relacionamento com os índios tupinambás, Léry pôde observar tranquilamente como é que esses nativos viviam. E as comparações vieram, inevitáveis. Foram, mais tarde, expostas em um livro, Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil.
Notou, logo de início, que os indígenas não eram nem mais altos e nem mais pesados que os europeus; não obstante, eram muito mais fortes. Por quê? Léry responsabilizou o clima do Brasil, que não tinha extremos de frio e calor, e o ar que, segundo ele, era puríssimo (¹). A diferença era tanta que um europeu jamais seria capaz de usar um arco indígena, e isso valia até mesmo para os ingleses, que eram considerados os melhores arqueiros da época - percebam, leitores, que era um francês quem estava dizendo... Europeus somente estavam em condições de usar arcos indígenas feitos para meninos de uns dez anos de idade, não mais. Espantosa, também, era a velocidade com que um tupinambá atirava. No tempo necessário para que um inglês disparasse meia dúzia de flechas, um índio faria o dobro.
Mas não era só. Andando por aldeias indígenas, Jean de Léry percebeu que o modo como as mães cuidavam de seus bebês era, por assim dizer, o oposto do que de se praticava na Europa. Crianças europeias viviam, no verão e no inverno, enfaixadas e cobertas por montes de agasalhos, e, mesmo admitindo as especificidades relativas ao clima frio, não podia o francês deixar de admirar que os bebês indígenas vivessem livres. Embora não usassem fraldas, nunca estavam sujos. Sim, aprendiam a gostar de banhos desde pequenos.
Prevendo que seus leitores não tardariam a argumentar que, mesmo levando vantagem nesses aspectos, os indígenas viviam em plena selvageria, Léry, longe de fugir da questão, tratou de expor o assunto. Não havia como negar que as guerras entre nativos eram sangrentas, que a antropofagia não era nenhuma raridade, que as inimizades entre tribos eram quase perpétuas. Um horror! Que diria Léry?
O jovem artesão francês, depois de deixar o Brasil em 1558, retornou à Europa, participou de guerras por causa de questões religiosas e, mais tarde, indo a Genebra, estudou teologia e veio a ser um pastor protestante. Só aí é que escreveu seu livro, e tinha, então, uma resposta na ponta da língua para as invectivas quanto à selvageria dos indígenas. Não estariam os europeus de seu tempo em pé de igualdade nesse assunto? Não eram os pobres, mesmo quando padeciam de fome, explorados pelos ricos? Não havia tantos que, mesmo orgulhosos de se chamarem cristãos, se engalfinhavam em guerras monstruosas, tendo a defesa da religião por pretexto? Que dizer do Massacre de São Bartolomeu?
O recado de Léry era simples: Se alguém queria ver selvageria, não era preciso sair da Europa. E concluía dizendo que, não fora o que chamava de "traição de Villegaignon", o Brasil teria sido seu lar para sempre.
Indígenas treinando para o combate (²) |
(1) Bons tempos, aqueles...
(2) ___________ Bilder - Atlas, Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus.
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