terça-feira, 29 de outubro de 2019

No alto da muralha

No alto da muralha, um soldado caminha lentamente e olha entre as ameias. Para. Apoiado no arco, o olhar perdido na distância, perscruta os arredores. Ainda está escuro. O cansaço das noites seguidas sem dormir o faz, primeiro, encostar-se à parede, e ir, aos poucos, escorregando contra o chão. 
Que ruído é esse? Não há tempo a perder. Coloca uma flecha na corda, puxa, sustenta por um instante. A flecha desliza suavemente entre seus dedos e parte em direção à base da muralha, onde um bando de soldados inimigos, sob a proteção de escudos, trabalha para mover uma torre sobre rodas. Outra flecha, e outra. A aljava está quase vazia. Um auxiliar corre entre os arqueiros, levando mais flechas. São as que restam. Lá embaixo, alguns combatentes tombam e se contorcem, mas outros assumem o posto. O barulho ensurdecedor, que vem da direita, não dá lugar a dúvidas. É que inimigos, carregando pesados troncos, tentam forçar a porta principal da cidade. Uma pancada é seguida de outra. A porta resiste. Por quanto tempo? Dentro, alguns defensores aguardam, o coração quase explodindo. As mãos sujas e calejadas dos guerreiros correm pelo rosto para enxugar o suor, implorando aos céus por chuva, por água, por alívio.
Quem sabe não virá auxílio repentino de aliados? Quem sabe uma epidemia não devastará o exército inimigo? Quem sabe notícias vindas de longe não farão com que o cerco seja suspenso?
A gritaria, dentro e fora dos muros, é horrível. Fora, as ordens de comando, o ímpeto do ataque, a ânsia do saque iminente. Dentro, a miséria de quase um ano de cerco. Já não há comida e a água é escassa. A sede rói os miseráveis que, sobre a muralha, ainda insistem em protelar a rendição. Não sabem, sequer, se ainda lhes resta alguém da família. Só ouvem os gritos de terror das mulheres que, macérrimas, se arrastam pelas vielas escuras, quer implorando o auxílio dos deuses, quer maldizendo as ingratas divindades que nada fazem. Crianças choram, não há pão. Estão com as horas contadas, uns poucos minutos, talvez. É a agonia da fome.
Atacantes conseguem, afinal, escalar a muralha, carregando tochas que atiram sobre as casas próximas. Puxando a espada, os poucos defensores começam o combate corpo a corpo. Já não há nenhum controle ou ordem na defesa. Cada um luta como pode. Alguns ainda resistem, mas será por pouco tempo. A cidade está em chamas.
No alto da muralha, o arqueiro arregala os olhos e se levanta. O céu está limpo, o sol começa a subir. O vento frio o traz de volta à realidade. Respira fundo. Mais um dia de resistência. No acampamento inimigo, a uma distância prudente, já há movimento. O combate final se aproxima.


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