quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Como indígenas se referiam ao rei de Portugal

Uma carta escrita pelo padre Antônio Vieira em 1653 e transcrita pelo padre José de Moraes na História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará (¹) traz uma revelação surpreendente quanto ao modo como indígenas se referiam ao rei de Portugal. O destinatário era o provincial jesuíta do Brasil, e o assunto principal, uma expedição da qual Vieira e outros inacianos haviam participado, percorrendo o rio Tocantins, com a finalidade, assim pensavam eles, de fazer contato com nativos para a catequese. Colonizadores que os acompanhavam tinham, porém, outros planos, porque viam nessa viagem uma oportunidade excelente para a captura e escravização de indígenas.
Por esse tempo, já eram corridos mais de cento e cinquenta anos que portugueses frequentavam o Brasil, não sendo, por essa razão, nada espantoso que indígenas que se relacionavam, de um ou outro modo, com colonizadores, tivessem conhecimento da existência de um rei em Portugal. No entanto, é possível que não entendessem muito bem a questão do poder hereditário e imaginassem que, década após década, o rei era sempre o mesmo, algo que se pode inferir das palavras de Vieira, ao relatar o encontro com parentes de líderes tribais, que, segundo o jesuíta, estavam dispostos a receber a catequese, mas nada queriam com os colonizadores (tinham razões de sobra para isso):
"[...] Em companhia deste índio vieram seis da nação a que íamos buscar, filhos e sobrinhos dos principais, com os quais e com os dois que vieram desde o Pará não temos perdido tempo, declarando-lhes a tenção de Sua Majestade, e a nossa, [...] e nos têm prometido que não hão de admitir senão o estar juntos, e ser filhos dos padres, e vassalos de El-Rei." (²)
Prossegue o padre Vieira:
"[...] Pasmei de ver, quão familiar é entre eles, este nome de rei, e quão continuamente o trazem na boca; e querendo eu saber, que conceito faziam da palavra, e o que cuidavam que era rei, responderam: Jára omanó eyma, que querem dizer: Senhor que não morre. [...]" (³)
E Vieira, ousado praticante de esgrima verbal, assim concluiu o episódio: 
"[...] Explicamos-lhes que imortal era só Deus; mas por este alto conceito que fazem estes gentios do nosso rei (⁴) mereciam ao menos, que em prêmio da imortalidade que lhe atribuem, os defendessem eficazmente de tantas violências." (⁵)

(1) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 470.
(3) Ibid.
(4) D. João IV, nessa ocasião.
(5) MORAES, José de S.J. Op. cit., p. 470.


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