quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Jacarés rondavam as canoas de uma expedição pelo Tocantins no Século XVII


Tentem imaginar, leitores, que vocês vivem em meados do Século XVII e fazem parte de uma expedição pelo rio Tocantins, em uma área quase desconhecida para os colonizadores. Sol forte, mosquitos, comida não muito farta - essas seriam algumas das dificuldades. Pois saibam que uma expedição assim de fato aconteceu, e um de seus líderes, o jesuíta Antônio Vieira, que pretendia catequizar indígenas e que, para além disso, era hábil com as palavras, fossem elas faladas ou escritas, assim narrou um episódio curioso, em uma carta destinada ao provincial de sua Ordem, que residia em Salvador:
"A tarde deste mesmo dia de São Tomé (¹) tivemos festejada com touros de água, que vimos de palanque, porque estando nós alojados em um assento sobre o rio à sombra de árvores com as canoas abicadas em terra, vieram dois crocodilos (que aqui chamam jacarés) a rondá-las por fora." (²)
Não esperem conhecimentos profundos de zoologia por parte do missionário dedicado que era Vieira. Seus notáveis talentos iam em outra direção. Continua seu relato, explicando como reagiram indígenas e colonizadores à chegada dessas visitas inesperadas:
"Não provaram neles [jacarés] os índios as suas flechas, porque já sabem que as conchas [sic] de que estão armados são impenetráveis a elas, sendo que as flechas de cana, a que chamam taquaras, não há saia de malha tão forte nem tão dobrada que lhes resista, e se são tiradas de boa mão passam uma porta de madeira rija de parte a parte. Os nossos soldados porém empregaram neles as suas espingardas, mas com mais acertado efeito que se pudera imaginar, porque a um meteram três balas na cabeça, e posto que a cada tiro mostravam sentir o golpe, saltando e mergulhando abaixo, tornavam logo a sair acima e a nadar como antes, tão alheios de fugir nem temer, que antes buscavam o lugar donde sentiam que viera a ferida. Com a quarta bala finalmente mergulhou e não apareceu mais, com que entendemos que morto se fora ao fundo." (³)
Que recepção tiveram as visitas, digo, os répteis! Nada ecológica, é certo, mas, naqueles tempos, essa não era uma grande preocupação. Vieira devia ter senso de humor: sabia que sua narrativa encheria os leitores de espanto; a carta era destinada ao provincial, mas, provavelmente, seria lida a todos os inacianos do Colégio da Bahia.

(1) 3 de julho; o ano era 1653.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 461. 
(3) Ibid., pp. 461 e 462.


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