Quem vivia nas povoações coloniais devia submeter-se a uma série de regras de conduta, tanto sociais quanto religiosas. Assim era, ao menos teoricamente. Aqueles, porém, que iam ao sertão em "entradas" ou "bandeiras" logo punham de lado as normas sob as quais, até então, tinham vivido. Às vezes faziam isso premidos pelas circunstâncias, mas, em outros casos, era o sabor da liberdade, desfrutado em meio às florestas, que provocava esse singular "esquecimento" das imposições do Estado ou da Igreja (que estavam, afinal, bem distantes).
Asserção feita, leitores, vamos à comprovação, fazendo uso, como exemplos, das confissões de pessoas que viviam no Recôncavo Baiano por ocasião da primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil (última década do Século XVI).
Um mameluco "confessando disse que haverá dezesseis anos mais ou menos que foi na companhia de Diogo Leitão, já defunto, ao sertão (¹) [...] para resgatar e fazer descer gentio (²) e nele andou nove ou dez meses, no qual tempo lá esteve uma Quaresma e nela e nos demais dias em que a Igreja defende (³) carne ele sem ter licença do ordinário e estando são e sem necessidade comeu carne, podendo escusá-la porque tinha outros mantimentos [...]" (⁴). Este mesmo homem admitiu, ainda, ter fumado com os índios, uma prática que não era bem-vista porque se supunha associada a rituais considerados pagãos pela Igreja. E mais: deu armas aos indígenas, declarando estar ciente de que, por esse motivo, era passível de excomunhão.
Outro indivíduo, também declarado mameluco, "confessando disse que ele vem [...] do sertão de Laripe onde andou ano e meio na companhia do capitão Cristóvão da Rocha, que foram para fazer descer gentio no qual tempo esteve lá uma Quaresma e nela e nos mais dias em que a Igreja defende carne comeu carne, e assim comeu toda a companhia, estando sãos e sem licença do ordinário, porém com necessidade porque não tinham outra coisa que comer" (⁵). A falta de outro alimento era considerada um atenuante.
Como quase sempre acontece em circunstâncias parecidas, havia quem delatasse os companheiros. Assim é que um terceiro mameluco, que também comeu carne na Quaresma, "disse [...] que viu o capitão da companhia em que ele estava no [...] sertão [...] dar uma espada e dois arcabuzes e pólvora e munição e tambor e bandeira de guerra e um cavalo e uma égua a um gentio, principal dos gentios [...] a troco de gentios escravos" (⁶). O lado curioso dessas confissões e delações é que elas vão, a pouco e pouco, ficando mais graves, ao menos sob o ponto de vista da Inquisição. É bastante provável que, percebendo que um companheiro estivera diante do inquisidor, outros entradistas achassem que, se queriam salvar a pele, deviam dizer o que sabiam, ainda que isso significasse acusar amigos e até parentes expedicionários. O Santo Ofício, como se sabe, era eficiente em provocar essa "magia".
Mais dois depoimentos, leitores, apenas para reforçar o que já vimos. Dizendo-se cristão-velho, um homem que participou de outra entrada contou que tendo ido "ao sertão fazer descer gentio na companhia de Domingos Fernandes [...] por muitas vezes e em diversos dias de Quaresma e sextas-feiras e sábados ele e a companhia comiam carne podendo escusar de a comer por terem favas e outras coisas com que se podiam manter sem comer carne" (⁷).
Finalmente, o próprio líder entradista Domingos Fernandes (que se declarou "nobre"), apareceu para depor e, entre muitos outros deslizes, "confessou que haverá vinte anos [...] foi ao sertão de Porto Seguro em companhia de Antonio Dias Adorno, à conquista do ouro, e no dito sertão ele usou dos usos e costumes dos gentios, tingindo-se pelas pernas com uma tinta chamada urucum e outra jenipapo e empenando-se pela cabeça de penas e tangendo os pandeiros dos gentios" (⁸). Mais que isso, "bebia com eles [indígenas] o seu fumo, que é o fumo de uma erva que em Portugal chamam a erva-santa" (⁹). Mais ainda, "teve sete mulheres gentias que lhe deram os gentios e as teve ao modo gentílico" (¹⁰). Á semelhança de muitos outros entradistas, deu armas aos indígenas e, concluindo sua esplêndida confissão, declarou que "muitas vezes disse que não queria vir-se nunca do sertão pois nele tinha muitas mulheres e comia carne nos dias defesos e fazia o mais que queria sem ninguém lhe tomar conta" (¹¹). Admirável sinceridade!
O senhor inquisidor advertiu a alguns dos confitentes sobre a gravidade de comer carne em dias proibidos, por ser "tão notável ofensa de Deus, que tão facilmente se pode escusar" (¹²). Quanto ao pecado de privar os povos indígenas da liberdade, não se registrou uma só palavra de recriminação.
(1) Uma comprovação de que as entradas ao sertão não estavam restritas à Capitania de São Vicente.
(2) Eufemismo para a captura e escravização de indígenas.
(3) Neste caso, "defende" significa "proíbe".
(4) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 120.
(5) Ibid., p. 123.
(6) Ibid., p. 125.
(7) Ibid., p. 134.
(8) Ibid., p. 220.
(9) Ibid., p. 222.
(10) Ibid., p. 222.
(11) Ibid., p. 226.
(12) Ibid., p. 191.
Asserção feita, leitores, vamos à comprovação, fazendo uso, como exemplos, das confissões de pessoas que viviam no Recôncavo Baiano por ocasião da primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil (última década do Século XVI).
Um mameluco "confessando disse que haverá dezesseis anos mais ou menos que foi na companhia de Diogo Leitão, já defunto, ao sertão (¹) [...] para resgatar e fazer descer gentio (²) e nele andou nove ou dez meses, no qual tempo lá esteve uma Quaresma e nela e nos demais dias em que a Igreja defende (³) carne ele sem ter licença do ordinário e estando são e sem necessidade comeu carne, podendo escusá-la porque tinha outros mantimentos [...]" (⁴). Este mesmo homem admitiu, ainda, ter fumado com os índios, uma prática que não era bem-vista porque se supunha associada a rituais considerados pagãos pela Igreja. E mais: deu armas aos indígenas, declarando estar ciente de que, por esse motivo, era passível de excomunhão.
Outro indivíduo, também declarado mameluco, "confessando disse que ele vem [...] do sertão de Laripe onde andou ano e meio na companhia do capitão Cristóvão da Rocha, que foram para fazer descer gentio no qual tempo esteve lá uma Quaresma e nela e nos mais dias em que a Igreja defende carne comeu carne, e assim comeu toda a companhia, estando sãos e sem licença do ordinário, porém com necessidade porque não tinham outra coisa que comer" (⁵). A falta de outro alimento era considerada um atenuante.
Como quase sempre acontece em circunstâncias parecidas, havia quem delatasse os companheiros. Assim é que um terceiro mameluco, que também comeu carne na Quaresma, "disse [...] que viu o capitão da companhia em que ele estava no [...] sertão [...] dar uma espada e dois arcabuzes e pólvora e munição e tambor e bandeira de guerra e um cavalo e uma égua a um gentio, principal dos gentios [...] a troco de gentios escravos" (⁶). O lado curioso dessas confissões e delações é que elas vão, a pouco e pouco, ficando mais graves, ao menos sob o ponto de vista da Inquisição. É bastante provável que, percebendo que um companheiro estivera diante do inquisidor, outros entradistas achassem que, se queriam salvar a pele, deviam dizer o que sabiam, ainda que isso significasse acusar amigos e até parentes expedicionários. O Santo Ofício, como se sabe, era eficiente em provocar essa "magia".
Mais dois depoimentos, leitores, apenas para reforçar o que já vimos. Dizendo-se cristão-velho, um homem que participou de outra entrada contou que tendo ido "ao sertão fazer descer gentio na companhia de Domingos Fernandes [...] por muitas vezes e em diversos dias de Quaresma e sextas-feiras e sábados ele e a companhia comiam carne podendo escusar de a comer por terem favas e outras coisas com que se podiam manter sem comer carne" (⁷).
Finalmente, o próprio líder entradista Domingos Fernandes (que se declarou "nobre"), apareceu para depor e, entre muitos outros deslizes, "confessou que haverá vinte anos [...] foi ao sertão de Porto Seguro em companhia de Antonio Dias Adorno, à conquista do ouro, e no dito sertão ele usou dos usos e costumes dos gentios, tingindo-se pelas pernas com uma tinta chamada urucum e outra jenipapo e empenando-se pela cabeça de penas e tangendo os pandeiros dos gentios" (⁸). Mais que isso, "bebia com eles [indígenas] o seu fumo, que é o fumo de uma erva que em Portugal chamam a erva-santa" (⁹). Mais ainda, "teve sete mulheres gentias que lhe deram os gentios e as teve ao modo gentílico" (¹⁰). Á semelhança de muitos outros entradistas, deu armas aos indígenas e, concluindo sua esplêndida confissão, declarou que "muitas vezes disse que não queria vir-se nunca do sertão pois nele tinha muitas mulheres e comia carne nos dias defesos e fazia o mais que queria sem ninguém lhe tomar conta" (¹¹). Admirável sinceridade!
O senhor inquisidor advertiu a alguns dos confitentes sobre a gravidade de comer carne em dias proibidos, por ser "tão notável ofensa de Deus, que tão facilmente se pode escusar" (¹²). Quanto ao pecado de privar os povos indígenas da liberdade, não se registrou uma só palavra de recriminação.
(1) Uma comprovação de que as entradas ao sertão não estavam restritas à Capitania de São Vicente.
(2) Eufemismo para a captura e escravização de indígenas.
(3) Neste caso, "defende" significa "proíbe".
(4) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 120.
(5) Ibid., p. 123.
(6) Ibid., p. 125.
(7) Ibid., p. 134.
(8) Ibid., p. 220.
(9) Ibid., p. 222.
(10) Ibid., p. 222.
(11) Ibid., p. 226.
(12) Ibid., p. 191.
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Adorei que no meio da tagarelice suscitada pelo santo ofício surgissem algumas personagens sinceras. Afinal, viver no mato em liberdade devia ser muito mais fácil do que atormentado por mil e uma regras sociais.
ResponderExcluirA questão é que até mesmo os mais sinceros acabaram enquadrados. Era assim que se vivia...
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