quinta-feira, 2 de março de 2023

Quaresma colonial

Nos dois primeiros séculos coloniais, as povoações de europeus e seus descendentes eram escassas no Brasil; a maioria delas tinha poucos moradores. É que uma parte considerável da população vivia no campo, não nas vilas e cidades, de modo que as famílias de senhores de engenho e de cultivadores de cana-de-açúcar e tabaco, por exemplo, apenas saíam das fazendas nas datas importantes, como era o caso das celebrações religiosas, em que as povoações sonolentas se viam, de uma hora para outra, repletas de habitantes temporários, que chegavam com o rangido dos carros de bois, de carroças ou com o pateado de cavalos e mulas. O comércio ganhava algum impulso e as casas, que em dias comuns permaneciam fechadas, se enchiam de movimento, em particular nas vastas cozinhas repletas de escravas que, vindo com os senhores, tinham de preparar comida para tantas bocas. 
A agitação, porém, era efêmera. Acabava tão logo a festa também chegava ao fim. Então, o movimento acontecia em sentido contrário, à medida que as famílias voltavam às fazendas. Com exceção das povoações maiores, as demais ficavam por conta do padre e de uns poucos comerciantes. Até a festa seguinte.
Os ritos quaresmais traziam gente às povoações por um tempo relativamente longo. Religiosos como eram, os membros da elite colonial não deixariam de aparecer nas igrejas, e as ruas e vielas ressoavam com rezas e cânticos piedosos. Ir às procissões era obrigação a que ninguém faltaria, a não ser em casos extremos. O padre André de Barros, da Companhia de Jesus, que escreveu uma biografia do também jesuíta Antônio Vieira, relatou, de passagem, o costume da vinda de famílias de fazendeiros à cidade para as celebrações da Quaresma. "[...] os concursos eram grandes", disse ele, "por se recolherem à cidade no tempo da Quaresma as famílias, que em suas lavouras e roças vivem fora dela [...]" (*). 
Interessante costume, esse: nas fazendas, os escravos, fossem eles indígenas ou de origem africana, eram forçados a trabalho extenuante, que para alguns significava a morte, enquanto seus senhores iam à vila ou cidade próxima e, com ares de penitentes, lotavam igrejas e capelas, rezavam devotamente e se imaginavam com um pé no céu. 

(*) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus, Livro II.. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 129.


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2 comentários:

  1. A Quaresma permitia isso mesmo, Marta. A ilusão de que tinham salvação, nem que tivessem que pagar em prata, mesmo que a sua prática fosse contrária a esse desiderato.

    Uma boa semana :)

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    1. Nesses tempos (e não só neles) as aparências eram prioridade. A religião funcionava como um disfarce.
      Ótima semana também por aí!

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