"Antônio Raposo, por exemplo, tem um destaque admirável entre todos os conquistadores sul-americanos. O seu heroísmo é brutal, maciço, sem frinchas, sem dobras, sem disfarces. Avança ininteligentemente, mecanicamente, inflexivelmente, como uma força natural desencadeada. A diagonal de mil e quinhentas léguas que traçou de São Paulo até ao Pacífico, cortando toda a América do Sul, por cima de rios, de chapadões, de pantanais, de corixas estagnadas, de desertos, de cordilheiras, de páramos nevados e de litorais aspérrimos, entre o espanto e as ruínas de cem tribos suplantadas, é um lance apavorante, de epopeia. Mas sente-se bem naquela ousadia individual a concentração maravilhosa de todas as ousadias de uma época.
O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico.
Foi o super-homem do deserto." Euclides da Cunha, À Margem da História
Há alguns erros que devem ser evitados, quando se trata dos bandeirantes. O primeiro deles é supor que, nos séculos XVII e XVIII, todo paulista era um bandeirante. Façamos uma comparação: atualmente, muitos meninos dizem que querem ser bombeiros, policiais, pilotos de avião, jogadores de futebol, mas mudam completamente de ideia quando adultos. Naqueles tempos, os bandeirantes, quando bem-sucedidos, enriqueciam, tornavam-se poderosos, respeitados, temidos. Podiam contar as proezas de sua vida aventurosa, que todos ouviam, boquiabertos. Andavam rodeados por índios escravizados, que lhes atendiam a todos os desejos. Mandavam, e eram obedecidos. Qual o garoto que não sonharia ser bandeirante, também?
Mas claro, na vida adulta tudo mudava. Nem sempre se podia deixar as ocupações, a família, e acompanhar uma bandeira, anos a fio, pelos sertões desconhecidos. Assim, ser bandeirante era um ideal. Não era para todo mundo.
Outro engano é imaginar que todo sertanista era rico e poderoso. Sim, os chefes geralmente eram, mas o grosso da tropa compunha-se de gente de situação econômica modesta, que buscava, arriscando a pele, uma oportunidade de "subir na vida". Havia também muitos índios escravizados, que, frequentemente, acompanhavam as bandeiras não porque quisessem, mas porque a isso eram obrigados.
Uma terceira ideia errônea é a de que as bandeiras eram exércitos particulares numerosíssimos. Havia bandeiras formadas por centenas de pessoas, sim, mas havia algumas com menos gente. Nesse caso, um chefe mais tarimbado, experiente nas coisas do sertão, disposto a um maior dispêndio de recursos com sua expedição, podia reunir uma quantidade mais expressiva de aventureiros que algum outro, menos famoso e respeitado. Vale acrescentar que os sertanistas experientes tinham, como resultado de seu "ofício", um maior número de índios cativos que podiam inscrever, compulsoriamente, em sua bandeira.
Ora, perguntará alguém, de que se alimentava toda essa gente, quando percorria o Brasil, até então, em grande parte, desconhecido?
A serem verídicos os relatos que chegaram até nossos dias, pode-se considerar um verdadeiro espanto a frugalidade dos sertanistas. Há, sobre isso, um trechinho bem interessante, escrito por Pedro Taques de Almeida Paes Leme no século XVIII, na Nobiliarchia Paulistana (ele próprio de uma família recheada de bandeirantes). Trata dos soldados paulistas, recrutados em 1762 entre os habituados a correr os sertões, para a guerra no sul do Brasil, pelo controle da Colônia do Sacramento, mas aponta para as práticas comuns nas bandeiras:
"...para se vencer o rompimento da dilatada meta trabalharam todos os soldados como robustos escravos, e se sustentaram de mel de abelhas e de raízes de paus de digestão (como sempre costumavam os antigos paulistas), a que chamam guaribá, por não terem levado o necessário sustento, e não lhes ser permitido matar caça para não serem sentidos pelo eco das armas".
Há também uma descrição algo mais detalhada, feita por Saint-Hilaire:
"A caça e a pesca forneciam alimentação abundante à tropa, e, ao sul da província, eram encontrados, como delicada iguaria, os frutos dos pinheiros-do-brasil (Araucaria brasiliensis); ao norte eram encontrados outros frutos e os brotos saborosos de algumas palmeiras, bem como raízes comestíveis e mel selvagem. Quando os corredores de desertos (sertanistas) calculavam só regressar depois de decorridos alguns anos, levavam grãos de cereais, de milho, principalmente, que semeavam, prosseguindo sua marcha, mas, voltando, passados alguns meses, para fazerem a colheita." (*)
Resta acrescentar que há relatos de que, em algumas situações, estando algumas bandeiras tão pressionadas pela falta de alimentos, chegou-se a cozer o couro de sapatos ou outras peças de vestuário. Vê-se, pois, que alistar-se como bandeirante não era, em absoluto, como reservar lugar para uma festa ou passeio na selva. Haja resistência!
(*) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 154 e 155.
Veja também:
- Gente de má fama (sobre a reputação dos bandeirantes)
Boa tarde. as ilustrações feitas pelo artista plástico Renato Guedes são muito interessantes e ricas em informações. Gostaria de saber onde ele se baseou para criar os ambientes e aparatos de sobrevivência por ele desenhados.
ResponderExcluirMeu interesse se prende ao fato de estar escrevendo um pequeno texto sobre a descoberta do ouro das Gerais e procurar introduzir nele algumas ilustrações.
Eduardo Camargo de Oliveira Pinto, professor aposentado da Escola Politécnica da USP da área de Metalurgia. ecopinto@terra.com.br
Gostaria muito de ter um contato com o Artista Renato Guedes.
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Boa tarde, Eduardo,
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