quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Descobridores tomavam posse das terras encontradas em nome do rei

Quando chegavam a um lugar que supunham estar descobrindo, navegadores dos Séculos XV e XVI, e mesmo mais tarde, tomavam posse do território em nome do respectivo rei ou imperador, com a formalidade que era, então, corrente. Assim fez Colombo, assim fez Cabral. Assim fizeram muitos outros.
As ordens expedidas para os que navegavam eram enfáticas nesse sentido. Ao mandar Martim Afonso de Sousa ao Brasil em 1530, como líder de uma expedição que devia investigar melhor o litoral e verificar as possibilidades de colonização, dizia o rei D. João III: ".[...] dou poder ao dito Martim Afonso de Sousa para que em todas as terras que forem de minha conquista e demarcação (¹) que ele achar e descobrir possa meter padrões [...] em meu nome [...]." Outro exemplo vem das ordens dadas a Pedro Sarmiento de Gamboa, a quem se encarregou uma expedição pelo Estreito de Magalhães nos anos de 1579 e 1580: "E onde quer que chegardes e saltardes em terra, tomareis posse, em nome de sua majestade, de todas as terras das províncias e partes a que chegardes, fazendo a solenidade e registros necessários, dos quais deem fé e testemunho em forma pública os ditos escrivães que levais." (²)
Sabe-se, mediante registro feito por seu escrivão, que Pedro Sarmiento cumpriu direitinho as ordens recebidas: "[...] o capitão superior Pedro Sarmiento se pôs em pé, e lançando mão a uma espada que tinha na cinta, disse em alta voz, em presença de todos, que fossem testemunhas de como "em nome da Sacra, Católica e Real Majestade do rei D. Filipe nosso senhor, rei de Castela e seus anexos, e em nome de seus herdeiros e sucessores", tomava posse daquela terra perpetuamente" (³). Em outra ocasião, registrou-se que a posse da terra foi declarada "sem contradição dos naturais" (⁴). Não consta, todavia, qualquer relatório de como e se os "naturais" foram informados da cerimônia e de seu significado.
Na lógica da época, quando descobridores tomavam posse de algum território, era como se o próprio rei ali estivesse, na pessoa de seus súditos, declarando que as terras encontradas eram, agora, de sua propriedade, incorporadas ao patrimônio real, com os aspectos práticos que daí resultavam, incluindo o direito a explorar o território e sua população como julgasse conveniente. E, como o rei estava longe, era também aos exploradores que competia, posteriormente, extrair as riquezas existentes, enviando às cabeças coroadas a parte que lhes correspondia. 
Ao desembarcar em 1518 no que viria a ser, mais tarde, a Nova Espanha, Hernán Cortés, no dizer de Bernal Díaz"tomou posse daquela terra por sua majestade e em seu real nome" (⁵). Ambicioso como era, não fazia ideia, contudo, do império que iria encontrar e, depois de combates e perdas terríveis, conquistar e destruir. Seria diferente se, em lugar de um súdito, estivesse lá, em pessoa, o rei da Espanha? Ninguém pode afirmar com certeza, mas os costumes então vigentes e os interesses econômicos, em tudo respaldados por argumentos religiosos, permitem, a quem quer que reflita sobre o assunto, fazer algumas conjecturas. Deixo aos leitores o direito às próprias conclusões.

(1) Uma provável referência às terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, seriam de Portugal, mesmo que ainda não estivessem formalmente descobertas.
(2) GAMBOA, Pedro Sarmiento de. Viage al Estrecho de Magallanes. Madrid: Imprenta Real de la Gazeta, 1768, p. 16.
(3) Ibid., pp. 72 e 73.
(4) Ibid., p. 165. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


4 comentários:

  1. Numa situação ou noutra, creio que algo seria imutável: o sentido de posse. Os naturais do novo espaço, para os europeus daquele tempo, mais não eram que meros empecilhos à sua ambição, sedenta de glórias e riqueza.
    Olhando a distância, os europeus eram autênticos bárbaros.

    Nunca se canse de escrever por aqui, Marta.
    Receba um abraço.

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  2. E se fosse o contrário, se fossem os indígenas da América que viajassem pelo Atlântico e chegassem à Europa, com armas melhores que os nativos europeus? Haveria alguma diferença?
    Obrigada pela visita ao blog, tenha uma ótima semana. Espero que sua horta esteja em franco progresso!

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  3. O conceito de bárbaro mudava de flanco, naturalmente.
    Repare, Marta, encontrar novas terras e gentes é coisa boa, de louvar, outro tanto já não direi das intenções: saquear, tomar, roubar, tudo coisas antagónicas de partilhar. Está a entender o meu ponto de vista? O grande problema é que, com o tempo nada aprendemos, continuamos a obedecer a instintos básicos, apenas nos tornámos um pouco mais sofisticados.
    Bom, não a aborreço mais. :)

    A minha horta vai ganhando contornos, obrigado.

    Continuação duma boa semana, Marta :)

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    1. Ora, ora, não está aborrecendo, não! Aliás, concordo totalmente com suas ideias quanto ao que havia de louvável em descobrir novas terras.
      O que tenho procurado combater é o pensamento que ainda existe por esse mundo de que a América era uma espécie de paraíso que europeus vieram destruir. Veja só, havia indígenas do Brasil que afirmavam não ser os primeiros habitantes daqui, reconhecendo que haviam tomado o lugar de outros. Faziam guerras constantemente entre si. Em suma, eram gente "normal", como os povos de outros continentes. Tinham uma cultura rica, com virtudes e defeitos. Isso, no entanto, não invalida o fato de que houve muita selvageria da parte de colonizadores. Então, não há espaço para a dicotomia bem X mal (indígenas X europeus) na conquista da América. Como sabe, tratando a História a sério, reconhecemos o que há de bom e mau na trajetória da humanidade, sem impor rótulos, apenas procurando estudar e aprender com o que o passado pode ensinar (para não errar novamente, se possível rsrsrsssss).
      Por aqui, o sol está se pondo. Olhei para o relógio e vi que já é noite há tempos em Portugal. Boa noite, portanto. Aguardo o próximo texto de seu blog.

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