quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Vias públicas parecidas com a superfície da Lua

A conservação de estradas, ruas e avenidas durante a República Velha


A conservação de vias públicas no Brasil é uma grande dificuldade desde tempos imemoriais. Podem rir, leitores: usei uma expressão velhusca para expressar um problema tão antigo quanto. 
Como sabem, nos tempos em que as tropas de muares faziam o transporte de cargas, a situação das poucas estradas era calamitosa, e as pobres mulas é que sofriam as consequências mais pesadas (sem nenhum trocadilho). Sobre esse assunto há várias postagens aqui no blog História & Outras Histórias.
O advento das ferrovias melhorou as condições de transporte, mas elas não alcançavam todo o País. As estradas, ditas "de rodagem" - sim, já que por elas rodavam carroças, carroções, carros de bois, raríssimas carruagens - não perderam sua importância, até porque também iam por elas não poucos pedestres, bem como as tropas de muares, que estavam ainda longe do desaparecimento. 
De acordo com o que escreveu Adolpho Augusto Pinto em História da Viação Pública de São Paulo, na virada do Século XIX para o Século XX eram estas, entre outras, as obrigações de quem arrematava a concessão para o serviço de manutenção das estradas de rodagem no Estado de São Paulo: 
"a) Prevenir a formação de atoleiros, consolidar o terreno por meio de camadas de cascalho, pedras quebradas ou areia;
b) Fazer desaparecer as depressões [...] que o trânsito e as águas tiverem produzido [...];
c) Manter [...] desobstruídos os bueiros, as valetas e os vãos das pontes e pontilhões;
d) Abaular o leito da estrada nas várzeas, estabelecer esgotos necessários para que as águas não atravessem a estrada fora dos lugares para esse fim destinados;
e) Conservar os taludes das cavas [...];
f) Remover do leito da estrada quaisquer obstáculos ao trânsito [...];
g) Fazer as roçadas que forem necessárias para que as margens da estrada se achem sempre descortinadas [...];
h) Reparar com prontidão quaisquer estragos ocasionados pelas chuvas;
i) Fazer os reparos que se tornarem necessários no soalho e guarda-corpo das pontes e pontilhões [...];
j) Enterrar os animais que forem encontrados mortos na estrada ou em suas imediações;
k) Alcatroar [...] todas as peças visíveis das pontes e pontilhões [...]." (¹)
A lista é longa, leitores, mas muito instrutiva, já que, pelos itens de manutenção mencionados, podemos, com um pouco de imaginação, visualizar como eram as estradas há pouco mais de cem anos: sem calçamento, muito afetadas pelas chuvas, com frequentes obstáculos ao trânsito e, não raro, com o agradável aroma decorrente de animais mortos que ficavam pelo caminho. Deviam, com tantos buracos, lembrar um pouco a superfície da Lua, como a vemos com o uso de um pequeno telescópio.
É claro que estradas assim não estavam aptas a receber o tráfego de automóveis, e foi exatamente a aparição deles que motivou alguma modernização. A polêmica envolvendo as obras de Washington Luís, primeiro como governador de São Paulo e depois como presidente da República, demonstra que, em tempos da República Velha, as viagens, para a maioria da população, eram ainda eventos incomuns, de modo que pouca gente percebia a necessidade de investir na modernização das vias de transporte.
Ora, se a situação das estradas de rodagem não estava para elogios, as vias urbanas só resultavam em sorrisos quando eram alvo de algum humorista. Nem mesmo as ruas da capital do Brasil (²) escapavam à existência de crateras notáveis. Se acham que estou exagerando, vejam só estes cartoons que apareceram na publicação carioca O Malho em 1923:


A legenda diz:
"- Eu gosto de uma cidade assim, parece um queijo.
- Um queijo?!
- Sim. Um queijo cheio de buracos..." (³)


Já aqui, diante de um veículo repleto de pneus sobressalentes, a legenda informa: 
"É o último modelo. São feitos especialmente para a cidade do Rio de Janeiro." (⁴)

(1) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, pp. 267 e 268.
(2) Rio de Janeiro, na época de que trata esta postagem.
(3) O MALHO, 28 de abril de 1923. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Ibid., 9 de junho de 1923.  O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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