sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A moda como fator nas pinturas corporais usadas por povos indígenas do Brasil

Indígena brasileiro, Século XVIII (³)
Moda não seria moda se fosse sempre a mesma. Tem por obrigação ser mutante (¹). Robert Southey, em sua História do Brasil, escreveu:
"A moda, pois, tão caprichosa na vida selvagem como na civilizada, é igualmente variável em ambas." (²)
O autor britânico disse isso a propósito das pinturas corporais usadas por povos indígenas do Brasil. Deixando de lado a questão quanto ao que é que Southey classificava como "selvagem" e "civilizado", e já informando aos leitores que "selvagens", para ele, eram os indígenas, passemos à consideração de que as pinturas corporais, tão frequentes entre os nativos do Brasil pela época do descobrimento, foram, aos poucos, caindo em desuso - teriam começado a sair de moda, pelo menos nas tribos litorâneas. O que Southey talvez não tenha considerado é que, para tanto, a presença do elemento colonizador pode ter sido decisiva. 
Como regra, missionários envolvidos na catequese tendiam a achar as pinturas uma expressão de paganismo, que devia ser abandonada pelos catecúmenos. Colonizadores que, por qualquer razão, se deixavam pintar ou "riscar" como indígenas, eram severamente repreendidos. Chegavam a ser alvo da Inquisição, conforme se vê em uma denúncia, por ocasião da primeira visitação do Santo Ofício à Bahia (1891):
"Viu riscar-se em um braço Manuel Branco, solteiro, mameluco, irmão de Jacome Branco, [...], segundo o costume gentílico, os quais gentios têm esta cerimônia que se riscam com lavores abertos na carne a modo de ferretes, significando serem gentios valentes, e da mesma maneira viu também riscar-se Domingos Dias, solteiro, mameluco [...]." (⁴)
Na mesma ocasião, certo Gaspar Nunes Barreto confessou também "ter-se feito riscar", como faziam os indígenas:
Índio mundurucu, Século XIX (⁷)
"Confessando disse que sendo ele mancebo desbarbado, que ainda não chegaria à idade de vinte anos, que seria de idade de dezesseis anos pouco mais ou menos [...] se mandou riscar por um negro da terra (⁵) na perna esquerda [...], o qual riscado ele consentiu e mandou fazer em si sem nenhuma tenção gentílica, mas simplesmente como moço ignorante [...], e isso é costume entre os gentios deste Brasil, os quais quando fazem alguns feitos grandes e mortes em guerras se costumam riscar da dita maneira pelos braços, pernas, corpo e rosto [...], e quanto mais valentes se querem mostrar, tanto mais junto dos olhos fazem os ditos lavores no rosto." (⁶)
Os leitores percebem que, para os indígenas, pinturas e outros sinais que se faziam no corpo funcionavam como um código, sinalizando quem era o indivíduo, a que grupo pertencia e qual o status que lhe cabia dentro do grupo. Para voltar ao pensamento de Southey, não se pode descartar completamente um fator moda nesse código, mas o declínio da prática estava muito provavelmente vinculado ao abandono gradual das tradições, tanto pela pressão vinda da catequese como pela própria desestruturação das sociedades indígenas, em decorrência das guerras contínuas contra colonos, das mortes numerosas por epidemias e da necessidade de fugir para o interior, a fim de escapar à escravidão e ao extermínio.
Por outro lado, admitamos que, vez por outra, as pinturas e sinais passassem por mudanças porque simplesmente alguns estilos saíam de moda. Em que isso deveria parecer estranho ou surpreendente, se levarmos em conta o vestuário e as perucas extravagantes que eram usuais entre a nobreza europeia do final do Século XVIII, que Southey devia conhecer muito bem?

(1) Achou a ideia meio pleonástica, leitor? Estou de acordo: é mesmo.
(2) SOUTHEY, Robert. História do Brasil vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 24.
(3) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 126.
(5) Nos Séculos XVI e XVII era comum que europeus que viviam no Brasil se referissem aos indígenas como "negros da terra".
(6) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Op. cit., pp. 128 e 129.
(7) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 84. 
A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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