segunda-feira, 12 de maio de 2014

Remédios estranhíssimos de antigamente - Parte 4: Tratamentos para feridas resultantes de flechadas

Quem vivia no Brasil dos tempos coloniais sabia muito bem o que era estar às turras com os nativos da América. Conflitos entre colonizadores e índios eram, então, fatos corriqueiros, de modo que levar flechadas não vinha a ser, em absoluto, uma raridade.
Esses ferimentos bélicos não eram coisa com que se brincasse. Indígenas bem treinados e habilidosos eram capazes de lançar flechas de uma distância razoável com grande precisão e força, de modo que o estrago não era pequeno. Protegiam-se os colonizadores usando um gibão acolchoado de algodão ou mesmo escudos feitos de couro de anta, mas era inevitável que, vez ou outra, alguém sofresse um dano mais sério que, devido à falta naqueles tempos de medicamentos realmente eficazes, acabava sendo fatal.
Ora, senhores leitores, os companheiros dos que se feriam em combate faziam todo o possível para curá-los. O problema é que esse "todo o possível" era, quase sempre, tão desastroso quanto a flechada. Ou seja, sarar ou morrer não dependia muito do tratamento recebido ou, o que era pior, a aplicação de certos "tratamentos" podia contribuir, no melhor dos casos, para apressar a morte.
Veremos dois casos de feridos por flecha: no primeiro, o homem teve a sorte de sobreviver, mas já no segundo, acabou morrendo, fato que, conforme se verá, não pode nem ser considerado surpreendente.
Quem relata o primeiro acontecimento é Pedro Taques de Almeida Paes Leme, na sua Nobiliarchia Paulistana, referindo-se a alguém que retornava a São Paulo depois de andanças pelo sertão:
"...ao entrar pela ponte, lhe dispararam uma flecha, que atravessando-lhe o papo, que tinha no pescoço, caiu da ponte abaixo [...]. Neste lance chegaram os outros irmãos, e se puseram em retirada os índios inimigos. Continuaram o destino da marcha para São Paulo, curando-se ao enfermo com mechas de fumo e mel de abelhas..."
Sem mais delongas, vamos ao segundo caso, o do famoso "Pai Pirá", um paulista que se tornou cacique de índios (!), fato relatado por Ayres de Casal:
"No meio do século passado vivia entre o Paranaíba e Rio Grande uma horda de bororos, cujo cacique era então um paulista chamado Antônio Pires de Campos, moço de muita esperteza, habilidade e gênio para fazer deste povo quanto dele se pretendesse por sua intermediação. Este homem, a quem seus crimes fizeram procurar tal sociedade, morreu entre os anos de cinquenta e sessenta de uma flechada num braço em um encontro com os caiapós. Seus camaradas lha medicaram por muitos dias com toucinho assado quente, até o porem numa povoação de cristãos em Minas Gerais, para ver se o curavam. Choraram-no por espaço de um mês como a pai comum." (*)
A ciência desses tempos estava ainda longe dos métodos que hoje garantem resultados mais precisos e, assim, aplicavam-se tratamentos que pareciam dar algum resultado, tudo empiricamente: se alguém usava algum "remédio" e o paciente sobrevivia, havia grande probabilidade de que, boca a boca, o tal tratamento fosse propagado, sem que se considerasse, nesse quadro, o acaso da sobrevivência como um fator. Pode ser de arrepiar os cabelos que alguém achasse que toucinho quente curaria uma flechada, mas aqueles eram dias em que as mais elementares noções de assepsia eram ainda desconhecidas. E, se lavar as mãos era coisa pouco frequente, como não esperar que mesmo feridas simples não resultassem em infecções mais sérias?

(*) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 351.


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