segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Capitanias hereditárias

Capitanias hereditárias foram chamadas as (enormes) faixas de terra que a Coroa portuguesa doou a leais vassalos de el-Rei, suposta a obrigação que teriam de colonizá-las com seus próprios recursos, além de colocá-las a salvo de invasores de várias nacionalidades que olhavam cobiçosamente para o belo litoral brasileiro e tudo o mais que poderia haver interior adentro. Teoricamente, o território de cada capitania era limitado, a leste, pelo Oceano Atlântico, e, a oeste, pela linha do Tratado de Tordesilhas. Ora, como ninguém sabia exatamente onde ficava a dita linha, a colonização avançou, salvo um ou outro protesto da Coroa de Espanha, até onde o apetite descobridor dos colonizadores conseguiu ir.
Ao donatário de uma capitania correspondiam direitos nada desprezíveis, dentre os quais o de deixar as terras como herança ao filho mais velho, fazer aplicar a justiça (ainda que com certos limites), fundar novas povoações, cobrar alguns impostos, doar sesmarias e requerer, dos moradores, serviço militar quando a capitania ou outras áreas coloniais estivessem sob ameaça. Diante de tanto poder, não chega a ser surpresa que alguns autores tenham entendido os donatários como uns verdadeiros senhores feudais. 
Curiosamente, a ideia de que as capitanias eram uma espécie de feudos, semelhantes aos existentes na Europa Medieval, não nasceu na cabeça de nenhum fervoroso marxista que tentasse, à unha, encaixá-las em uma lógica de modos de produção que pudessem justificar, no plano teórico, a luta por uma revolução socialista no Brasil. Longe disso! Dentre outros autores, Varnhagen (¹), Capistrano de Abreu (²) e Euclides da Cunha (³) referiram-se às capitanias com linguagem emprestada das tradições feudais. No entanto, Frei Gaspar da Madre de Deus, autor setecentista, ao tratar da questão das capitanias hereditárias, cuidou em explicar que eram "grandes províncias em que el-Rei d. João III dividiu a Nova Lusitânia [...]." (⁴) Não deixa de ser interessante que, vivendo quando algumas capitanias ainda existiam, não ocorresse ao religioso beneditino, natural de São Vicente, a ideia de que elas eram de algum modo comparáveis aos feudos medievais. Só mais tarde apareceriam tentativas nesse sentido.
É verdade que as capitanias tinham algumas características que podiam recordar a autonomia dos feudos, mas, em última análise, os donatários e os administradores por eles indicados estavam submetidos a uma autoridade inconteste, a do rei de Portugal. Jamais seria formada, no Brasil, uma autêntica teia de relações de suserania e vassalagem, marca típica do feudalismo no medievo. Colonos nunca foram servos da gleba, e, quanto à escravidão de indígenas e de africanos, nem vale a pena comentar, tamanha a distância entre um fenômeno e outro. Sim, havia a hereditariedade na sucessão, certa mania de grandeza heráldica entre as famílias de donatários, mas não ia muito além. Prova disso é que, ao instituir no Brasil o Governo-Geral, a Coroa reduziu sensivelmente a esfera de poder dos donatários, que até estrebucharam contra as novidades, porém inutilmente. Era também a Coroa que arbitrava questões sucessórias, que comprava capitanias de seus herdeiros sempre que isso lhe parecia bom negócio e que também, quando lhe deu na telha, acabou com o sistema, que, de resto, se não foi um fracasso absoluto, sempre andou bem longe de ser classificado como um êxito retumbante.

(1) "Pouco antes, o governo português [...] viu-se obrigado a adotar o plano de colonizar pelo simples meio de ceder essas terras a uma espécie de novos senhores feudais, que, por seus próprios esforços, as guardassem e cultivassem, povoando-as de colonos europeus, com a condição de prestarem preito e homenagem à Coroa."
VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 130.
(2) "Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, D. João III tratou menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com poderes bastantes para arrostarem usurpações possíveis dos solarengos vindouros, análogas às ocorridas na história portuguesa da média idade."
ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998, p. 49.
(3) "Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando-se o povoamento do país com idênticos elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da "Índia portentosa", abriu-se separação radical entre o Sul e o Norte."
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 
(4) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 1.


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