quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Uma proposta do Século XVIII para imunização de indígenas contra a varíola

O título longo da obra, Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma, seguia uma prática em moda no tempo em que foi escrita, a segunda metade do Século XVIII. Seu autor, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, assim que assumiu o cargo para o qual fora nomeado, decidiu embarcar em canoas, acompanhado pela família, por alguns funcionários públicos e por remadores indígenas, para conhecer de perto as localidades habitadas na Capitania de São José do Rio Negro. 
Entendam, leitores: isso significava percorrer a Amazônia no Século XVIII. Não era tarefa fácil, e chega a ser uma surpresa que alguém se aventurasse a tanto, quando muitos outros haviam preferido a comodidade da permanência na sede de governo. As anotações que fez, em forma de diário da viagem essencialmente fluvial, ocorrida entre 1774 e 1775, foram mais tarde publicadas sob a forma de um pequeno livro. Poucos tinham, então, a oportunidade de viajar para terras distantes, e um registro assim podia despertar interesse. Em certa localidade, notou que a população indígena sofria bastante com a varíola, também chamada de "bexigas", conforme o dizer popular da época, e escreveu: 
"Grassavam [...] funestamente as bexigas, ainda que já estavam terminando. Além dos índios que morreram, tinham desertado muitos, principalmente da nação Purus, com medo delas [...], porque as bexigas em índios são mal mortal, e de que raros escapam.  Atribui-se a causa à dificuldade de erupção das bexigas, considerando-se que a cútis dos índios é menos porosa [...]. Seria coisa felicíssima que se introduzisse nas povoações dos índios o fácil e proveitoso método de inocular ou enxertar as bexigas. Que milhares de vidas se não poupariam!" (¹)
Hoje parece cômico que alguém explicasse a tragédia da varíola entre indígenas pela suposta diferença na porosidade da pele - como todos sabem, a questão é outra. Porém, muito interessante, é que esse autor, administrador público e viajante sugerisse o emprego da inoculação, um método rústico (e um tanto perigoso) de imunização, que, se devidamente aplicado, poderia salvar vidas entre a população nativa. É pouco provável que se referisse à imunização com a vacina proveniente da varíola bovina, que já se experimentava com sucesso na Europa, e que, mais tarde, Edward Jenner formalizaria (²). Contudo, esse trecho do diário, escrito em 12 de outubro de 1774 por Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio demonstra, sem margem a dúvida, que mesmo na Amazônia, tão distante dos grandes centros de pesquisas médicas do Século XVIII, se cogitava a utilização de um método que reduzisse o impacto da varíola em indígenas, talvez por já ser usado em parte da população colonial de origem europeia. 
A vacinação, propriamente dita, pelo método de Jenner, não demorou muito a ser introduzida no Brasil. Portanto, contrariando uma ideia corrente, deve-se entender que desconhecimento não é uma justificativa plausível para a famosa Revolta da Vacina, na capital do Brasil, ocorrida cento e trinta anos depois que Ribeiro Sampaio escreveu o seu Diário de Viagem

(1) SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma. Lisboa: Typografia da Academia, 1825, p. 24.
(2) Em 1796.


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