"... às vezes sucede entre certos políticos, aos quais tanto cega a paixão, que julgam bem da pátria o que é apenas satisfação dos seus interesses."
F. A. Varnhagen, História Geral do Brasil
Tecnicamente, uma ditadura caracteriza-se pelo exercício do poder, dentro do Regime Republicano, por um indivíduo ou um grupo que não está sujeito a uma Constituição, quer ela simplesmente não exista, quer, apesar de existir, não seja respeitada ou, "no interesse nacional", seja desconsiderada. Um exemplo clássico desse segundo caso é o que ocorreu no Brasil durante a vigência do Ato Institucional nº 5 (¹), cujo texto era, sob esse aspecto, bastante explícito, ao atribuir ao presidente da República a capacidade de atuar sem as limitações constitucionais e sem que suas decisões, dentro do determinado pelo mesmo AI-5, fossem alvo de apreciação judicial, conforme se vê, por exemplo, nos Artigos 3º, 4º e 11:
"Art. 3º - O presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos." (²)
Outras vezes, tenta-se disfarçar a ditadura sob uma aura constitucional, mas a escandalosa concentração de poderes em mãos de um único indivíduo acaba por revelar as reais intenções de quem exerce o poder, conforme facilmente se depreende, por exemplo, da Constituição do Estado Novo (³), na qual se lê:
"Art. 73 - O presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional e superintende a administração do País."
Recomenda-se, a quem tiver maior interesse pelo assunto, a leitura de todo o longo (longuíssimo!) Artigo 74 e também do Artigo 75, nos quais são expostos, respectivamente, as competências e prerrogativas do presidente da República. Impressionam pela abrangência, quando se tem estômago para ler até o final.
De qualquer modo, é bom salientar que, tanto no caso do governo fundado no pressuposto da Constituição de 1937 quanto no dos que se serviram do AI-5, existia, em tese, uma clássica tripartição de Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), ocorrendo, no entanto, um óbvio deslocamento da força decisória em favor do Executivo, como os trechos já citados evidenciam.
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Ditadura e totalitarismo não são necessariamente sinônimos. O Estado totalitário é aquele no qual o indivíduo, em última análise, existe apenas em função dos interesses dos Estado, para cuja grandeza toda a sua existência deve ser pautada. Por isso, um regime ditatorial pode ser também totalitário (por exemplo, Nazismo e Fascismo), mas há ditadores que exercem um governo apenas personalista, sem a abrangência que o totalitarismo requer. E, nesse caso, os exemplos são tantos, que a lista acabaria longa demais.
É verdade que tem havido ditaduras um tanto ingênuas, enquanto outras são o que há de mais pérfido; algumas são pobres em termos ideológicos, enquanto outras chegam ao auge do refinamento em formalizar a ideologia que lhe constitui sustentáculo. Mas, ao fim e ao cabo, são todas ditaduras, nem mais e nem menos. Pode-se até alegar que este ou aquele ditador fez um bom governo - é ditadura, ainda assim e, face aos valores da democracia, uma usurpação pura e simples dos direitos dos cidadãos.
O que mais impressiona, e talvez revele muito sobre a humanidade, é que sempre há uma parcela significativa de pessoas que não somente apoia ditadores, como ainda entende que a ditadura é o único tipo de governo que deveria existir. Engana-se quem pensa que as massas são sempre e necessariamente coagidas a secundar os atos dos ditadores, embora isso também aconteça: a maioria das pessoas que iam e vão a manifestações públicas em apoio a ditaduras ia ou vai de livre e espontânea vontade. Eis aí um assunto que é verdadeiro festim para psicanalistas voltados ao estudo de comportamentos coletivos. Não chega, pois, a surpreender, que os que exercem o mando ditatorialmente ousem alegar-se não só escolhidos do povo, mas até eleitos de Deus, fazendo gravar essa "predestinação" em selos postais, documentos de caráter oficial, moedas (⁴) e sabe-se lá mais onde.
(1) Entrou em vigor no dia 13 de dezembro de 1968.
(2) Os grifos não pertencem ao documento original.
(3) Entrou em vigor em 10 de novembro de 1937.
(4) É evidente que nem todo mundo que teve o rosto estampado em selos ou moedas foi ou é um ditador - apenas é fato notório que os ditadores parecem ter um especial apreço por essas "homenagens".
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