quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Tempestade em Piratininga

Para os jesuítas que iniciaram a catequese no Brasil em meados do Século XVI quase tudo o que encontravam era novidade, desde o modo de vida da população indígena que pretendiam doutrinar às características naturais da América do Sul, com suas matas de árvores gigantescas cobrindo serras que pareciam intransponíveis. Sabemos, por exemplo, que as tempestades, no mar ou em terra, deixavam os missionários apavorados. 
Um relato de maio de 1560, incluído em uma carta escrita por José de Anchieta ao padre-geral (¹) dos jesuítas, conta de uma tormenta que abalou Piratininga, ou seja, São Paulo, causando estragos notáveis:
"Não há muitos dias, estando nós em Piratininga, começou, depois do pôr do sol, o ar a turvar-se de repente, a enublar-se o céu, a amiudarem-se os relâmpagos e trovões, levantando-se então vento sul a envolver pouco a pouco a terra, até que [...] caiu com tanta violência que parecia ameaçar-nos o Senhor com a destruição: abalou as casas, arrebatou os telhados e derribou as matas; a árvores de colossal altura arrancou pelas raízes, partiu pelo meio outras menores, despedaçou outras, de tal maneira que ficaram obstruídas as estradas, e nenhuma passagem havia pelos bosques; era para admirar quantos estragos de árvores e casas produziu no espaço de meia hora (pois não durou mais do que isso), e, na verdade, se o Senhor não tivesse abreviado aquele tempo, nada poderia resistir a tamanha violência e tudo cairia por terra." (²)
Ora, temos aqui um Anchieta verdadeiramente loquaz na descrição da tempestade, tão diferente do escritor comedido que usava ser, até por escassez de papel... É que a tormenta deve ter causado nele uma terrível impressão. Talvez hoje alguém dissesse que correspondeu à chegada de uma frente fria, mas, independente da causa, será útil recordar que, na pequenina São Paulo daqueles dias, as construções ocupadas pelos jesuítas e outros colonizadores eram deveras precárias, daí porque o estrago deve ter resultado ainda maior. Outro ponto a observar é que, como religioso, Anchieta, ao que parece, fez em sua carta uma discreta referência a uma passagem do Evangelho Segundo S. Mateus, relacionada ao que se costuma chamar de "fim do mundo": "et nisi breviati fuissent dies illis non fieret salva omnis caro sed propter electos breviabuntur dies illi..." (³) A chuva e a ventania devem ter sido brutais!...
Todavia, o mais interessante do registro de Anchieta, como ele próprio reconheceu, ainda estava à frente:
"O que, porém, no meio de tudo isso, se tornou mais digno de admiração, é que os índios, que nessa ocasião se compraziam em bebidas e cantares (como costumam), não se aterraram com tanta confusão de coisas, nem deixaram de dançar e beber, como se tudo estivesse em completa tranquilidade." (⁴)
Podemos supor que os indígenas, plenamente habituados às súbitas mudanças de humor das condições climáticas, julgaram melhor continuar a festança, até porque de nada valeria a muita preocupação. Nem todo o terror que viessem a expressar seria de alguma utilidade para amainar a fúria das intempéries.

(1) Na ocasião, o padre Diego Laynez.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 104 e 105.
(3) Mt 24, 22: "Se aqueles dias não fossem abreviados, ninguém se salvaria, mas foram abreviados por causa dos eleitos."
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J.  Op. cit., p. 105.


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