sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Combate singular

Uma batalha, na Antiguidade, podia resultar em horrorosa carnificina. Políbio de Megalópolis, descrevendo a luta entre cartagineses e romanos em Zama (¹), observou que "o campo entre os exércitos ficou coberto de sangue, mortos e feridos, trazendo a Cipião (²) um grande problema, uma vez que os cadáveres, os feridos que se revolviam no próprio sangue e a confusão de armamentos dispersos tornavam a passagem quase intransponível às tropas que, em formação, aguardavam sua vez de entrar em combate." (³)
Muito bem, leitores, recuperem o fôlego, e vamos adiante. Às vezes acontecia que, em lugar de dois exércitos se enfrentarem com muitas perdas, cada um elegia seu campeão e estes dois heróis lutavam até que um vencesse, sendo o resultado válido (esperava-se) como se toda a tropa entrasse em ação. A essa luta entre dois soldados que representavam seus respectivos exércitos dá-se o nome de combate singular.
Além da possibilidade de evitar uma matança generalizada, havia outras razões que podiam levar à opção pelo combate singular. Na Antiguidade era comum que os exércitos inimigos acampassem um à vista do outro, mantendo, porém,  uma certa distância, e assim permanecessem durante algum tempo, aguardando a hora oportuna para o ataque. Todavia, uma longa espera, podia ser de todo inconveniente, pois:
  • Era, quase sempre, enervante para os soldados;
  • Aumentava a demanda por suprimentos (alimentos e água, principalmente), para os homens e para os animais;
  • Ampliava a possibilidade de que, durante a espera, sucedesse algum imprevisto, talvez uma doença entre os soldados ou uma súbita mudança nas condições climáticas, como uma chuva forte ou uma nevasca, acarretando uma alteração completa no cenário da guerra;
  • Dava tempo ao inimigo para solicitar e receber reforços.
Tudo isso, em conjunto, podia incitar à ideia de um combate singular, quando o enfrentamento tradicional não parecia muito sábio. Acrescentemos, ainda, um certo gosto por feitos heroicos - chamem de provocação, se quiserem - e teremos a explicação para que dois valentões se engalfinhassem à vista da soldadesca que, neste caso, devia ter uma atuação parecida à das modernas hordas de torcedores nos estádios de futebol.
Vejamos agora um exemplo bastante esclarecedor. Foi no ano 394 da fundação de Roma, ou 359 a.C., quando romanos e gauleses se enfrentavam. Um gaulês muito alto e forte apareceu e, nas palavras de Tito Lívio (⁴), propôs:
"Que venha o homem mais forte que há em Roma para que lute comigo, e aquele de nós que vencer, seja a sua gente a melhor na guerra."
Se o desafio parecer razoável, será útil recordar que os gauleses tinham por costume zombar dos romanos, a quem consideravam baixinhos (⁵). O que ocorreu em seguida foi assim descrito por Tito Lívio:
"Houve um longo silêncio entre a juventude romana, envergonhada de fugir ao combate, e, ao mesmo tempo, com receio da exposição a tamanho perigo." (⁶)
Afinal, Tito Mânlio, depois conhecido como Torquato, compareceu diante de seu comandante e, obtida a permissão, aceitou o desafio do fortão gaulês. Tomaram-se disposições para que a luta ocorresse com toda a lisura, o que incluía, por suposto, a escolha de um lugar que não favorecesse a nenhum dos dois. A um sinal, o combate começou e, se devemos crer no que disse Tito Lívio, não durou muito, já que o jovem Tito Mânlio, depois de dois golpes certeiros, jogou o gaulês ao chão - morto.
Nessas circunstâncias, o resultado do combate singular podia simplesmente ser acatado conforme o acordo, mas não era incomum que o exército ao qual pertencia o vencedor, tomado de brio, atacasse os oponentes na intenção de pô-los em fuga. No caso específico de que tratamos, a informação de Tito Lívio (⁷) é de que foram os gauleses que deram no pé: "Os gauleses, na noite seguinte, estando com muito medo, abandonaram os acampamentos e se foram." 
Pensem, leitores, como seria interessante se os gauleses tivessem registrado, também, a sua versão dos fatos, de modo que fosse possível confrontar os pontos de vista! 

(1) Em 202 a.C.; último combate da Segunda Guerra Púnica.
(2) Comandante romano.
(3) Políbio de Megalóplis, História.
(4) Ab urbe condita libri.
(5) Pelo menos foi isso que afirmou, em tempos posteriores, ninguém menos que Júlio César (em De Bello Gallico), que, ressalte-se, de tanto lutar contra eles, conhecia os gauleses muito bem.
(6) Ab urbe condita libri.
(7) Os trechos de Políbio (História) e de de Tito Lívio (Ab urbe condita libri) citados nesta postagem são tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

2 comentários:

  1. Marta, pôs um suspense tal na história que me vi aqui, a ler de respiração suspensa. Seria interessante o outro lado da história, sim. Mas, como sempre, a História é a dos vencedores...
    Magnífico post
    Beijinhos
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Só nas versões dos contos de fadas recontadas durante o Romantismo é que as coisas poderiam ser diferentes.
      Bem, parece que no Século XX houve quem fizesse os gauleses levarem a melhor sobre os romanos...

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