Era 1736. No contexto das disputas entre portugueses e espanhóis sobre questões relacionadas aos limites de suas terras na América do Sul, Manuel Dias da Silva resolveu organizar uma expedição cujo objetivo era apoiar as pretensões da Coroa Lusitana. Havia, porém, um problema (entre muitos outros): Como atinar com o rumo correto a ser seguido?
Pode-se ler na Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme:
"Consistia também a dificuldade no temor de não acertar com o sítio de Camapuã por falta de geografia, cuja ciência totalmente ignorava, bem como todos os antigos paulistas, que sem outro adjutório mais do que o rumo do nascente ao poente, a que lhes servia de verdadeira agulha o sol, penetraram a maior parte dos incultos sertões da América, conquistando nações bárbaras, de cujos índios se serviam, como administradores seus, pelo benefício de os terem desentranhado do paganismo para o grêmio da Igreja." [sic!]
A revelação fundamental, aqui, nem é tanto o problema com que se deparava Manuel Dias da Silva. É, sim, que os antigos paulistas, ao correrem o interior do Brasil, não podiam contar com conhecimentos de geografia (sobre uma área que, aliás, ninguém conhecia mesmo), nem sabiam usar mapas ou instrumentos, como a bússola por exemplo. Pedro Taques não menciona, mas é verdade que os índios cativos eram, frequentemente, guias nas trilhas do sertão. Mas mesmo eles não podiam indicar caminhos para além dos terrenos que conheciam. O sol foi, depreende-se do texto citado, o guia principal de que dispunham os sertanistas a que chamamos bandeirantes, quando se tratava de achar o caminho em meio à vegetação cerrada e ao relevo desconhecido.
Acontece, meus leitores, que os bandeirantes de São Paulo não eram, nesses tempos, os únicos que desconheciam geografia. Mesmo gente de maior instrução, erudita, até, tinha severas dificuldades nessa área. Basta dar uma olhada nos mapas que então havia, ou correr os olhos por obras escritas por intelectuais da época. O mar de tolices escritas sobre o Brasil é tão vasto, que chega a ser difícil pinçar algumas "obras de arte", para gáudio de meus leitores. Mas vão a seguir algumas lorotas cabeludas, que farão sorrir quem estudou, direitinho, suas lições de Geografia. Para facilitar as coisas, as citações obedecem à ordem cronológica em que foram escritas.
a) Pero Vaz de Caminha, na "Carta do Descobrimento", datada de 1500, relatando ao rei D. Manuel a chegada da esquadra de Cabral ao Brasil:
"Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste ponto houvemos vista, será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa." (¹)
b) Pero de Magalhães Gândavo, afirmando, na segunda metade do século XVI, que os rios Paraguai e São Francisco provinham de um mesmo lago:
"Neste rio pela terra dentro se vem meter outro a que chamam Paraguai, que também procede do mesmo lago como o de São Francisco que atrás fica." (²)
c) O Padre Simão de Vasconcelos entendia que o Amazonas e o Rio da Prata uniam-se no sertão:
"O comprimento deste grão-gigante dos rios é de mil e trezentas, mil e seiscentas ou mil e oitocentas léguas, segundo cômputos vários dos que o navegaram. A distância por onde estende seus braços espaçosos, direito e esquerdo, soma passante de mil léguas, por relação das gentes que bebem suas águas, e assim deve ser de razão, para ser verdade o que dizem, que chegam no meio do sertão a dar-se as mãos estes dois rios do Pará e da Prata." (³)
d) Novamente o Padre Simão de Vasconcelos, tratando, desta vez, do rio São Francisco:
"É este rio um dos mais célebres do Brasil, o primogênito daqueles dois primeiros, e como marco terceiro do meio desta costa. Está em altura de 10 graus e um quarto. É copiosíssimo em águas, desemboca no mar, com duas léguas de largura, com tanta violência que bebem delas os mareantes em distância de quatro e cinco léguas antes de sua barra. Seu nascimento é daquela famosa lagoa feita das vertentes de águas das serranias do Chile e Peru, donde dissemos procediam os outros dois principais rios Grão-Pará e da Prata." (⁴)
Observação muito importante:
Quem não entendeu coisa alguma precisa, desesperadamente, ir estudar Geografia agora mesmo!
(1) A légua, de acordo com o padrão que fosse adotado, podia ter pouco mais de 5,5 km ou cerca de 6,1 km.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. 1576.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 32.
(4) Ibid. p. 49.
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