quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 3

O "Padre do Ouro"


"Porque está hoje o mundo (e principalmente este Estado do Brasil) em tais termos, que mais parecem alguns sacerdotes mercadores negociantes, que ministros de Deus e Curas de almas." (¹) Isso escreveu, no século XVIII, o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Estaria ele exagerando? Os fatos mostram que, infelizmente, não, até porque isso não era, necessariamente, coisa mal vista pela sociedade. Vai aqui uma amostrinha:
"O reverendo Simão de Toledo Rodovalho, foi por visitador das minas de Mato Grosso, vigário da Vara e da Igreja em 1768, em que tomou posse, e logo faleceu, antes de se aproveitar daquele muito rendoso ministério." (²)
Vejam os senhores leitores que isso é assim candidamente relatado, de forma tão clara e explícita, na famosa Nobiliarchia Paulistana. A intenção era elogiar!
Esse caso, no entanto, não gerava escândalo, já que o religioso estaria, apenas, cuidando dos ofícios de sua vocação. Mas havia religiosos que deixavam completamente as atribuições eclesiásticas para entrarem sertão adentro, atrás de ouro e de índios que, depois, eram vendidos como escravos. O mais célebre deles talvez tenha sido um conhecido como "Padre do Ouro". Vejamos:
"Isso não faziam os que temiam a Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida, que da que haviam de dar a Deus, e principalmente veio um clérigo a esta Capitania, a quem vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar de grande mineiro, e por esta arte era mui estimado de Duarte Coelho de Albuquerque, e o mandou ao sertão com trinta homens brancos e duzentos índios, que não quis ele mais, nem lhe eram necessários, porque em chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte e bem povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas ou folhas lançava para o ar, tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobres gentios, machos e fêmeas, tremendo de pés e mãos, e se acolhiam aos brancos, que o padre levava consigo; os quais não faziam mais que amarrá-los e levá-los aos barcos, e aqueles idos, outros vindos, sem que Duarte Coelho de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu tio e de seu irmão Jorge de Albuquerque, do Reino, querer nunca atalhar tão grande tirania, não sei se pelo que interessava nas peças, que se vendiam, se porque o Padre Mágico o tinha enfeitiçado [...]." (³)
Sim, alguns leitores devem ter franzido a testa, levantando objeções a esta história. Em respeito a esses leitores, cabem algumas considerações. Quem narrou o caso foi Frei Vicente do Salvador, ele próprio um religioso, daí afastar-se, de saída, a hipótese de uma indisposição do autor com o clero; por outro lado, é verdade que a época (século XVII) era de muita credulidade, e ninguém precisa crer hoje que, de fato, o tal padre tivesse o poder de provocar agitações no inferno; admitamos, no entanto, que pudesse usar de um artifício qualquer (lembram-se do Anhanguera, se é que foi ele mesmo que pôs fogo na cachaça?), e fiquemos com o essencial: fosse lá qual fosse o meio empregado, o péssimo homem servia-se dele para aprisionar os índios, que, desse modo, eram reduzidos à escravidão. Excelente religioso, este!
É evidente que, ao tomar ciência de fatos assim, autoridades faziam severas recomendações aos superiores das ordens religiosas, no sentido de impedir que seus subordinados escapulissem para as minas, onde, não raro, envolviam-se em agitações e revoltas populares. A experiência mostrava, porém, o quanto isso era difícil.
Quanto ao dito "Padre do Ouro", é ainda Frei Vicente do Salvador quem relata:
"E o Padre do Ouro também foi preso em um navio para o Reino, o qual arribou às ilhas, donde desapareceu uma noite sem mais se saber dele." (⁴)
 
(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 388.
(2) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana.
(3) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.

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