"Mas Pedro Ruivo ia aguilhoado pelo medo e varava o mato como a terrível anta, que no seu espanto não enxerga obstáculo diante de si."
Aluísio Azevedo, Mistério da Tijuca
"Livre, como o tufão, corre o vaqueiro
Pelos morros e várzea e tabuleiro
Do intrincado cipó.
Que importa’os dedos da jurema aduncos?
A anta, ao vê-los, oculta-se nos juncos,
Voa a nuvem de pó."
Castro Alves, Os escravos
Frei Vicente do Salvador, famoso por ter sido, talvez, o primeiro nascido em solo brasileiro a escrever uma História do Brasil, assim descreveu as antas:
"Há outros animais a que chamam antas, que são de feição de mulas, mas não tão grandes, e têm o focinho mais delgado, e o beiço superior comprido à maneira de tromba, e as orelhas redondas, a cor cinzenta pelo corpo, é branca pela barriga, estas saem a pascer só de noite, e tanto que amanhece metem-se em matos espessos, e ali estão o dia todo escondidos [...]."
Terá nosso primeiro historiador nativo alcançado seu propósito com a descrição que fez? Pode-se ter uma ideia se forem comparadas as suas palavras com o que se vê na foto abaixo.
Anta ou tapir |
A anta (também chamada tapir) causou forte impressão nos primeiros colonizadores por suas dimensões - um espécime de bom tamanho pode chegar perto dos trezentos quilos. Toda essa massa era muito interessante para gente acostumada a ver os animais como comida ambulante, embora, conforme logo saberemos, a qualidade da carne e seu sabor fossem um tanto discutíveis. O significado prático disso é que carne de anta não era, geralmente, a primeira escolha, mas era consumida na falta de alguma coisa melhor.
O couro da anta, por outro lado, era apreciado nos tempos coloniais. Dele eram feitos calçados rústicos, mas resistentes, além de outros artigos, o que incluía até armas empregadas nas bandeiras de apresamento de índios. Os testamentos deixados por bandeirantes nos informam que, entre seus pertences, havia quase sempre objetos confeccionados com couro de anta.
Voltemos agora à questão do sabor desse avantajado herbívoro. Hércules Florence, em seu diário da Expedição Langsdorff (1825 a 1829), deixou preciosas anotações a respeito. Uma delas relata as aventuras de uma caçada:
"Depois do meio-dia tivemos o espetáculo de uma caçada de anta (tapir). Supusera o pobre bicho poder passar o rio sem tropeço, mas foi pressentido e, dado o alarma, num momento acudiram todos à margem, saindo logo três canoas a persegui-lo. Debalde mergulhava, debalde nadava largo tempo debaixo d'água para subtrair-se à morte, quando ia alcançar a barranca oposta e atirar-se no mato, a bala certeira de nosso piloto varou-lhe o crânio. Um dos proeiros, bom mergulhador, foi tirá-lo do fundo da corrente." (¹)
Por que toda essa carnificina, aqui descrita com cores que poderíamos rotular de cinematográficas? Ah, leitores, as viagens ao interior nesse tempo traziam aos monçoeiros inúmeras dificuldades e, além das doenças, do cansaço, do desconforto, dos mosquitos, havia sempre a ameaça da fome, pois vastidões sem conta eram percorridas sem que se encontrasse um único habitante e, por conseguinte, sem que se visse um ponto de abastecimento, onde se pudessem comprar gêneros alimentícios. Daí a lançarem-se os expedicionários a caçar o que aparecesse pela frente, era só um passo.
Em outra passagem, diz o mesmo autor:
"Matou-se uma anta. Dizem que a carne desse animal faz sair os humores do corpo, razão pela qual obra como purgante e produz moléstias de pele." (²)
Tal observação, no entanto, não impediu que os expedicionários, poucos dias depois, fizessem um verdadeiro banquete de carne de anta, conforme nos conta o próprio H. Florence:
"O ajudante do guia que fora na véspera a um barreiro (lugar onde há depósitos de sais naturais) fazer durante a noite espera de antas, matou lá quatro desses animais. Quando amanheceu, um batelão foi buscá-los, mas não trouxe senão três, porque o quarto caíra n'água e desaparecera. Nossa gente comeu carne a fartar. A abundância reinava no acampamento: por todos os lados faziam-se assados e churrascos. Mandamos moquear uma boa porção, expondo-a à fumaça de um fogaréu, para poder conservá-la. Só achei comíveis o fígado e o coração. O Sr. Taunay, que depois do naufrágio do Urânia nas Ilhas Malvinas vira-se na contingência de comer carne de cavalo, assevera que a do tapir tem o mesmo gosto." (³)
Satisfeita, pois, a curiosidade quanto ao sabor de carne de anta (ao menos no que se refere à percepção de quem fez o relato), resta dizer que pela cabeça do excelente desenhista da Expedição Langsdorff passou uma ideia extra, pra lá de curiosa, ou seja, a de que antas poderiam servir, nem mais, nem menos, como animais de carga:
"A anta domestica-se com facilidade e poderia prestar, como animal de carga, os mesmos serviços que as bestas. Tem, com efeito, tanta força quanto elas, embora seja de menor tamanho." (⁴)
Como jamais vi por aí uma "anta de carga", tal proposta dispensa maiores comentários.
(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 23.
(2) Ibid., p. 36.
(3) Ibid., p. 39.
(4) Ibid., p. 23.
Veja também:
- Animais na História do Brasil (Parte 1): Os "quadrúpedes indígenas" do padre Ayres de Casal
- Animais na História do Brasil (Parte 2): Tigres e leões na América do Sul?
- Animais na História do Brasil (Parte 3): Histórias de onça
- Animais na História do Brasil (Parte 5): Os ferozes queixadas
- Animais na História do Brasil (Parte 6): A capivara
- Animais na História do Brasil (Parte 7): Cervos e veados
- Animais na História do Brasil (Parte 8): Preguiças
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