"Com efeito da orla da selva rompia um bando de porcos-do-mato. Mais de cem desses animais selvagens, com a pupila chamejante, ouriçando as ruivas cerdas, e afiando os longos colmilhos nos queixais chocalhados pela sanha, trotavam em fila, e figuravam na relva da campina a verga combusta do imenso arco de algum tamoio gigante.Assim avançam os ferozes queixadas, rompendo relvas, estraçalhando quanto encontram com os cutelos das presas, ou esmagando-o sob a úngula bissulca das cem patas cadentes que batem o chão. Se o inimigo resiste ao primeiro ímpeto do centro, ou se receiam lhes fuja, as pontas do arco se estorcem, e a vara fatal cinge o mísero, que tomba em pedaços, como a isca à flor de tanque piscoso."José de Alencar, Til
Semelhantes sob vários aspectos aos porcos-monteses da Europa, os queixadas ou porcos-do-mato (¹) logo atraíram a atenção dos colonizadores, que viam na abundância desses animais a garantia de caça apetitosa e farta. Isso, naturalmente, a despeito do perigo, pois esses porcos selvagens, percorrendo as matas em enormes manadas, eram capazes de aterrorizar até o mais indômito dentre os caçadores. Algo parecidos na forma, os simpáticos e, quase sempre pacíficos caititus, às vezes "pagavam o pato".
Queixada ou porco-do-mato |
Mas, se os queixadas eram assim tão perigosos, como caçá-los? Frei Vicente do Salvador, ao descrever os ditos animais, deixou-nos um relato de qual era o procedimento empregado em sua captura:
"Há também muitos porcos-monteses; alguns como os javalis de Espanha, os quais andam em manadas, e se o caçador fere algum há logo de subir-se a alguma árvore, porque vendo eles que não podem chegar-lhe remetem todos ao ferido e aos outros que se pegou algum sangue, com tanta fereza que se não apartam até não deixarem três ou quatro mortos no campo, e então se vão em paz, e o caçador também com a caça." (²)
Ainda assim, leitor, se fosse possível (hipoteticamente, claro), fazer uma enquete entre os sertanistas que andavam a percorrer o território ainda ignoto do Brasil nos tempos coloniais, os porcos-do-mato figurariam, sem sombra de dúvidas, entre os grandes terrores que os assaltavam. Alguns relatos mais, que agora consideraremos, podem confirmar esta ideia.
No primeiro deles, é o próprio Frei Vicente do Salvador quem conta de um ataque a uma tropa de entradistas:
"Em a era do Senhor de 1578, em que Lourenço da Veiga governava este Estado, se ordenou em Pernambuco uma entrada para o sertão em que foi por capitão Francisco Barbosa da Silva em um caravelão até ao rio de São Francisco, e por ser a gente muita, e não caber na embarcação, foram setenta homens por terra, levando por seu cabo a Diogo de Crasto, que falava bem a língua da terra e havia já ido da Bahia a outras entradas.
Estes, havendo passado o rio Formoso, foram cometidos de um bando de porcos-monteses, com tanta fúria e rugido de dentes, que os pôs em pavor, mas como tinham as espingardas carregadas, descarregaram-nas neles, e os fizeram voltar, ficando sete mortos, que foram bons para a matalotagem." (³)
Outros relatos vêm de Teotônio José Juzarte, o sargento-mor que, em 1769, conduziu uma monção pelo Tietê afora. Ele mesmo lista os porcos-do-mato entre os grandes perigos que ameaçavam os monçoeiros:
"Há as onças, e tigres e as grandes manadas de porcos-de-mato que são bravíssimos, e de muito longe se ouve o estrépito que fazem com os dentes, de tudo isto se tem grande cuidado durante a noite." (⁴)
E, para confirmarmos que há dia da caça e dia do caçador, outros dois breves trechos do Diário da Navegação anotado por Juzarte, sendo o segundo deles um exemplo no mínimo exótico dos tratamentos dispensados aos doentes no Período Colonial. Sem mais delongas, vamos a eles:
"... e saíram muitos homens a caçar por aqueles matos onde se perdeu um soldado [...]; ... sendo já oito horas da noite ouviram que o soldado gritava, acudindo para aquela parte deram com ele trepado sobre uma árvore sem saber em que parte estava, e disposto a ficar a morrer naquele sertão; contou que o motivo de se trepar naquela árvore fora um grande número de porcos-do-mato que com violenta carreira se encaminhavam para ele, aos quais seguia e perseguia uma onça de extraordinária grandeza, que à vista disto se salvou em cima daquela árvore para passar ali a noite até o dia seguinte para então ver se acertava com o lugar aonde ficavam as embarcações [...]." (⁵)
"... seguindo encontramos uma quantidade de porcos-do-mato que com os dentes faziam grande bulha, embicamos em terra, e logo saltaram alguns caçadores, e com efeito mataram três, os quais se repartiram pelos doentes..." (⁶)
Sim, sua leitura está correta: "os quais se repartiram pelos doentes"! Sucede que a comida escasseava entre os monçoeiros e, ao capturarem alguma caça, reservavam-na para os que estavam mais debilitados.
(1) A lista de animais que aparece na Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal, mencionada na primeira postagem desta série, refere apenas a existência de porcos-monteses no Brasil.
(1) A lista de animais que aparece na Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal, mencionada na primeira postagem desta série, refere apenas a existência de porcos-monteses no Brasil.
(2) História do Brasil.
(3) Ibid.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 236.
(5) Ibid., p. 244.
(6) Ibid., p. 271.
Veja também:
- Animais na História do Brasil (Parte 1): Os "quadrúpedes indígenas" do padre Ayres de Casal
- Animais na História do Brasil (Parte 2): Tigres e leões na América do Sul?
- Animais na História do Brasil (Parte 3): Histórias de onça
- Animais na História do Brasil (Parte 4): Churrasco de anta
- Animais na História do Brasil (Parte 6): A capivara
- Animais na História do Brasil (Parte 7): Cervos e veados
- Animais na História do Brasil (Parte 8): Preguiças
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