quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mulheres paulistas do Período Colonial, viúvas de maridos (talvez ainda) vivos

Na Capitania de São Vicente, e em particular na povoação de São Paulo do Período Colonial, era traço marcante o intenso amor que a população masculina devotava às aventuras pelo sertão, fosse no intuito de aprisionar índios para a escravização (quase sempre), fosse na procura por metais preciosos (às vezes). Para os religiosos envolvidos na catequese de nativos, eram os sertanistas considerados um verdadeiro estorvo, e isso desde a infância: a criançada, tão logo aprendia uns míseros rabiscos que só por atrevimento podiam chamar-se de escrita, metia-se com os pais em expedições que duravam meses, até anos. Um belo dia tornavam, na companhia de outros expedicionários, à vila de origem. Embrutecidos pelo viver no sertão, corriam o risco de sequer serem reconhecidos pela família. Haviam-se tornado homens, segundo os conceitos de seu tempo.
Mas em São Vicente não havia, por suposto, apenas homens. Havia as mulheres, havia as meninas...
Casamento era, em geral, coisa que os pais decidiam. A menina, quando vinha de uma família que lhe destinava um dote, apenas tida como apta para procriar (¹), casava-se com aquele que o pai escolhera, não raro um homem muito mais velho, que já se casara outras vezes. Enviuvara, ele, muito provavelmente pela morte de uma ou mais esposas no parto. Casava-se então, novamente. E a infeliz menina via-se, de um dia para outro, esposa de um bandeirante, o que significava, muitas vezes, viver quase como viúva, se levarmos em conta o fato de que os homens passavam grande parte do tempo em suas andanças mato afora. Quando o bandeirante voltava, permanecia, em geral, pouco tempo com a família, até que nova correria pelas selvas o levasse para bem longe. Acontecia, por vezes, durante essas curtas permanências do marido na vila, que a esposa engravidava e, quando o bebê vinha ao mundo, o pai, com grande probabilidade, já não estava mais em casa. Se levarmos em conta a altíssima mortalidade infantil da época, não era raro que um pai não chegasse a conhecer os filhos - muitas crianças morriam antes que o pai retornasse do sertão. Alguns bebês, naturalmente, sobreviviam, e iriam garantir a perpetuação da lógica familiar típica daquele tempo e lugar, que talvez hoje nos pareça muito estranha. (²)
Mas não era só. Para as mulheres casadas com sertanistas, essas verdadeiras viúvas de maridos vivos, ficavam pesadas responsabilidades. Deviam administrar a casa, com a ampla família que ali vivia, cuidar dos filhos, fazer trabalhar a escravaria (³), garantir que as roças fossem cultivadas - sozinhas, às vezes com a ajuda de parentes. Sem reclamar. Rezando sempre pelos que estavam distantes. Referindo-se a seus maridos como "senhores" (⁴). Esperando por um retorno que talvez nunca ocorresse.
Algumas dessas mulheres, ao morrerem, deixavam testamentos (feitos pela mão de terceiros, pois eram poucas as que sabiam escrever). Neles, diziam desconhecer se o marido, que fora ao sertão, ainda vivia. É o que relata Pedro Taques de Almeida Paes Leme em sua Nobiliarchia Paulistana, no trecho abaixo:
"Francisca Pedrosa, faleceu com testamento a 4 de julho de 1725, natural de Itu, e declarou ser filha de Florência Corrêa e Sebastião Pedroso, que fora casada com Bartolomeu Rodrigues Bezaranno, o qual logo depois de casado fora para o sertão do rio Paraguai; até aquele ano não havia notícia se era vivo ou morto."
Ou neste outro:
"Catarina Bicudo casou na matriz de São Paulo a 2 de outubro de 1637 com Gaspar Vaz Madeira [...], que foi para o sertão [...] na tropa de Antônio Raposo Tavares, e ficou dito Pedro Vaz Madeira no Grão-Pará, de onde não tinha vindo mais até o ano de 1686, nem se tinha notícia dele."
Eventualmente, porém, a tal viuvez com marido vivo acabava tomando outros rumos. Ainda segundo a Nobiliarchia Paulistana:
"Sebastiana Pedroso [...] casou em São Vicente com Antônio de Faria Vilas-Boas, natural de Lisboa. [...] Porém, estando ausente seu marido, o dito Vilas-Boas, adulterou com seu cunhado Inácio da Costa de Siqueira, alferes de infantaria da praça de Santos [...]. Deste incesto teve Sebastiana Pedroso três filhas, que foram expostas em diversas casas."

(1) A adolescência, como uma fase de transição, tal qual hoje a entendemos no mundo ocidental, era coisa desconsiderada naquela época.
(2) Talvez não totalmente.
(3) Em geral de origem indígena, e tanto mais numerosa quanto mais sucesso tivesse o bandeirante de quem era "propriedade".
(4) Era usual, na época, e o foi por muito tempo, entre pessoas de origem ibérica, que em público a mulher chamasse o marido de "Senhor Fulano", devendo o marido dizer "Dona Sicrana" ou ainda "Senhora Dona Sicrana".


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2 comentários:

  1. Fantástico post, Marta. Vim retribuir a sua amável visita lá no blog. Visitá-la-ei mais vezes, gostei muito do seu cantinho de história.
    Um abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Obrigada pela visita. Estou sempre passeando pelo "Berço do Mundo", e o recomendo a todos os leitores de "História & Outras Histórias".

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