quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 4

Não deveríamos ter estradas de ferro em lugar de tropas de muares?


Na postagem anterior mencionei um cálculo que apareceu no jornal O Agricultor Brasileiro em novembro de 1853, segundo o qual a perda com a morte de escravos em todas as Províncias brasileiras, a contar do ano da Independência (1822), seria de, pelo menos, 509.175 contos de réis, quantia essa que, se aplicada a juros de 6% ao ano, estaria produzindo naquele mesmo ano de 1853 uma renda anual superior a 30 mil contos de réis, um valor enorme para a época. Esse cálculo era feito na suposição de que um escravo morto significava imediatamente a compra de um novo escravo, prática que, conforme mostrei na primeira postagem desta série, era habitual entre os latifundiários brasileiros.
Pois bem, se todo esse dinheiro não se gastasse em escravos, que se poderia fazer com ele? A resposta vinha prontamente no jornal citado: devia ser investido na construção de ferrovias:
"Dada a hipótese que ela houvesse sido aplicada à confecção de estradas de ferro, e supondo que cada légua destas estradas importasse em cem contos de réis, teria hoje o Brasil não menos de 305 léguas de caminhos de ferro." (¹)
Não havia, no entanto, nesse ano de 1853, nem mesmo uns poucos metros de estrada de ferro devidamente inaugurados.
Expliquemos.
A parte mais lucrativa da lavoura brasileira era, no Século XIX, aquela destinada à exportação. Ocorre, no entanto, que muitas propriedades agrícolas localizavam-se bem longe dos portos e, por esse motivo, era preciso fazer transportar a produção, toda ela, até os locais de embarque, de onde seria enviada para a Europa e, um pouco mais tarde, também para os Estados Unidos. O caso é que esse transporte era feito, nem mais, nem menos, que nas costas de mulas!... Haja eficiência, pois.
Aqui o fazendeiro tinha duas possibilidades, e podia escolher uma delas ou, ainda, adotar um sistema misto: ter sua própria tropa de muares ou contratar os serviços de tropeiros. Em ambos os casos, teria grandes despesas, mas o pior era a condição das mercadorias, assim transportadas, quando finalmente chegavam aos portos, depois de serem carregadas, mundo afora, por caminhos péssimos e empoeirados, mal-acomodadas ao lombo dos pobres animais, e expostas de contínuo ao sol e à chuva. Tal sistema de transporte resultava em depreciação do produto, nem seria preciso dizer.

Tropa de mulas, de acordo com desenho aquarelado de Thomas Ender (²)

A despeito de um sistema tão deficiente, demorou para que as primeiras ferrovias chegassem a operar. Afinal, os investimentos em sua construção precisavam ser muito grandes e não havia certeza de que os lucros chegassem a ser compatíveis com os riscos envolvidos. Excetuando-se a pequena ferrovia de Mauá datada de 1854, linhas mais importantes somente começaram a funcionar a partir de fins da década de 1850. Resultaram, porém, em uma melhoria geral nas condições de exportação e provaram ser um investimento compensador. Ferrovias de São Paulo, por exemplo, em época de safra do café, chegavam a rejeitar o transporte de outras mercadorias, tal era a demanda dos cafeicultores para que o produto chegasse rapidamente ao porto de Santos. (³)

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6. O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Para ter uma ideia mais completa das mercadorias que eram transportadas nas ferrovias paulistas, veja a postagem "O que se transportava nas ferrovias paulistas no Século XIX".


Veja também:

2 comentários:

  1. Marta, foi algo que me surpreendeu profundamente quando morei no Brasil, em 2011... como é que um território tão grande tem tão pouco investimento em ferrovias? E depois as estradas ficam pejadas de camiões...
    Abraço, excelente postagem
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. O que acontece é que, por uns cem anos, mais ou menos, o transporte tanto de carga quanto de passageiros foi feito, predominantemente, por ferrovias. Nào eram as mais modernas do mundo, mas funcionavam. A partir da década de 1950, no entanto, houve uma mudança na matriz de transporte prioritária, em funçào da instalaçào de montadoras de veículos no País. O resto nào é difícil de imaginar. As ferrovias foram, aos poucos, sendo desativadas e, paralelamente, os congestionamentos tornaram-se uma realidade quotidiana.
      O problema mais grave disso tudo è que hoje há um atraso gigantesco em termos de infraestrutura viária, e mesmo cidades muito grandes só vão pensar em algum projeto modernizador quando a deficiência se tornou crônica. O mesmo acontece em relação ao transporte de carga nas rodovias. Recentemente, em virtude da safra de grãos (como soja, por exemplo), houve enormes congestionamentos nas rodovias direcionadas ao Porto de Santos, com os caminhões precisando aguardar dias para descarregar. Inegável o impacto de tudo isso na economia.

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