terça-feira, 24 de março de 2020

Como era preparada a cachaça usada no tráfico de africanos escravizados

Cachaça e tabaco estavam entre as principais mercadorias que, levadas do Brasil, eram trocadas, já na África, por humanos escravizados. Em uma pequena obra publicada ainda durante o Período Regencial (¹) e destinada a combater o tráfico de africanos, Frederico Burlamaqui não economizou palavras para mostrar que traficantes de cativos incentivavam os conflitos entre povos do Continente Africano para que, depois, quando apresentassem mercadorias de valor irrisório, pudessem comprar inimigos derrotados  e aprisionados, a fim de embarcá-los rumo ao Brasil, onde seriam vendidos como escravos. De acordo com esse autor, "os primeiros contrabandistas de escravos foram os próprios que promoveram guerra entre as nações da África, e continuam a fornecer-lhes armas que alimentam e fazem perpétuas essas guerras assoladoras. E a que preços, e por que preços [...] vendem e trocam tantos milheiros de indivíduos da espécie humana? É a troco de miseráveis fazendas, de armas e veneno [...]". (²)

Africanos escravizados em Moçambique sendo conduzidos para embarque (³)

A argumentação empregada por Burlamaqui pode soar pesada aos leitores de hoje, mas deve ser considerada no contexto das lutas pela abolição do tráfico no Século XIX. É preciso esclarecer, porém, a que espécie de "veneno" se referiu, como em uso no tráfico. Em uma nota de rodapé na sua Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica, vem, do mesmo autor, a explicação: "Ninguém ignora ser a aguardente ou cachaça o principal gênero do comércio de escravos [...]. Todos sabem que o uso imoderado deste licor faz o efeito de um verdadeiro veneno; mas nem todos sabem, que, para tornar este gênero mais forte, e ao mesmo tempo produzir mais interesse aos traficantes, lhe ajuntam uma infusão concentrada de fumo, e a misturam com água salgada. Julguem que efeitos não devem produzir tais ingredientes, e se é hiperbólico o termo veneno [...]." (⁴)
Estarrecedor? Concordo, e já advirto que é improvável que o autor exagerasse, ou o argumento não alcançaria o fim pretendido. Teve, ainda, o cuidado de explicar, na mesma nota, que outros artigos entravam no tráfico: "O resto das carregações consta de armas, munições, algumas roupas já em desuso [...], e em miseráveis fazendas (⁵), rebotalho das fábricas inglesas! Se algum dinheiro em moeda vai não é certamente para os negros: esta mercadoria só a querem alguns miseráveis brancos estabelecidos temporariamente no país, e que aspirando a deixá-lo quando tiverem adquirido alguma fortuna, só querem moeda, que facilmente se transporta." (⁶)
Essa era, portanto, a situação do tráfico de africanos no Século XIX, que, no Brasil, somente seria abolido em definitivo no ano de 1850, mediante a Lei Eusébio de Queirós. 

(1) Escrita em 1834, a obra foi publicada três anos mais tarde.
(2) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 10.
(3) _____ Bilder-Atlas, Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Op. cit., p. 10.
(5) Burlamaqui se refere a tecidos de procedência britânica.
(6) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Op. cit., pp. 10 e 11.


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2 comentários:

  1. Estes angariadores de escravos eram brutos e asquerosos. Esta é uma época histórica que me causa aversão.

    Tenha uma boa semana, Marta :)

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    1. Também tenho aversão, mas, por dever de ofício, preciso tratar dela. Embora o tempo do tráfico de africanos escravizados tenha ficado para trás, há muitas outras formas de injustiça no mundo, e a reflexão sobre o passado pode ser útil na análise daquilo que hoje acontece.
      Tenha uma ótima semana!

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