Desde que, em fins do século XVII, encontrou-se ouro no interior do Brasil, muitos dentre a população já residente na colônia, e outros que vieram de fora, lançaram-se febrilmente à exploração do metal precioso. Despovoavam-se as vilas e cidades já existentes, e outras surgiram, quase como mágica, nos locais considerados promissores para a mineração. Sobre isso escreveu Saint-Hilaire:
"Conformavam-se, tanto quanto possível, com os misteriosos e lacônicos roteiros dos mais antigos sertanistas; em toda a parte eram pesquisadas a areia dos ribeirões e a terra das montanhas, e, quando encontravam algum terreno aurífero, construíam barracas em sua vizinhança, a fim de explorá-lo. Essas espécies de acampamento (arraiais) tornavam-se pequenas povoações, depois vilas; e foi assim que os paulistas começaram a povoar o interior das terras, incorporando à monarquia regiões mais vastas do que muitos impérios." (¹)
É interessante notar que se, por um lado, os acampamentos e outras formas provisórias de habitação deram origem a muitas novas povoações, por outro, quando se esgotava o ouro facilmente explorável, muitas dessas localidades eram abandonadas, desaparecendo completamente ou, na melhor das hipóteses, resistindo como um pequeno núcleo de agricultura de subsistência.
Isso não invalida o fato, no entanto, de que a mineração propiciou um verdadeiro ciclo de urbanização no interior do Brasil, principalmente nas Minas Gerais, mas também em Goiás e, em menor escala, em outros lugares. Sobre a mais famosa das cidades nascidas da mineração, escreveu o Padre Ayres de Casal:
"Vila Rica, anteriormente Ouro Preto, criada em 1711, grande, populosa, abastada e florescente, é a Capital e residência dos governadores da Província e do ouvidor da Comarca [...]. Tem juiz de fora do cível, crime e órfãos, servindo também de procurador da Coroa; vigário forâneo, professores régios de Primeiras Letras, Latim e Filosofia; porém é mal situada nas abas meridionais da serra do Ouro Preto, entre morros tristonhos, em terreno mui desigual, e frequentemente coberta de névoa [...]." (²)
Rio Vermelho ao passar pela Cidade de Goiás |
Já em Goiás a mais destacada povoação foi Vila Boa de Goiás, inicialmente Arraial de Sant'Ana, fundada no século XVIII pelo famoso bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva. Cabeça da Província e depois Estado de Goiás, preservou essa condição até que, já no século XX, a Capital foi transferida para Goiânia. Sobre ela escreveu o mesmo Padre Ayres de Casal:
"Vila Boa, a princípio Arraial de Santa Ana, erigida no ano de 1739, grande, populosa e florescente, é a residência do governador, do prelado, que é bispo in partibus, e também do ouvidor da comarca, que serve de provedor das capelas, resíduos e ausentes e de juiz da Coroa. [...] Está situada em lugar baixo, sobre as margens do rio Vermelho, que a divide em dois bairros pouco desiguais e comunicados por três pontes. Fica no centro do Estado. Seus edifícios nem são grandes, nem elegantes, nem muito sólidos: os notáveis são a igreja matriz, dedicada a Santa Ana, cinco capelas de Nossa Senhora, com as invocações de Boa Morte, Rosário, Carmo, Abadia e Lapa; outra de São Francisco; o Palácio dos Governadores, a Casa da Câmara, a da Contadoria e a da Fundição do Ouro. Tem um fortim com duas peças para salvar nas solenidades, um chafariz e um passeio público." (³)
Capela da Boa Morte, Cidade de Goiás |
Vale dizer que, ainda segundo Ayres de Casal, a mineração foi a grande propulsora da urbanização em Goiás:
"Quase todas as povoações desta Província existiam já quando ela foi criada e entregue ao governo do ilustríssimo Conde d'Arcos, D. Marcos de Noronha; e nenhuma (exceto as do meio-dia) deve sua fundação senão ao ouro." (⁴)
Resta ainda verificar quem era a gente que, enfrentando a longa e perigosa viagem até as minas, estava disposta a arriscar-se para ali enriquecer. Sobre isso, num trecho memorável de sua obra, Antonil escreveu:
"A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e meterem-se por caminhos ásperos, como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmente lá estão. Contudo os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo e as correram todas dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister, não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar.
Igreja de São Francisco, Cidade de Goiás |
Cada ano vem nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros para passarem às Minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens, e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, religiosos de diversos Institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento ou casa. " (⁵)
Fica evidente que, nessas condições, os núcleos urbanos decorrentes da mineração eram potencialmente capazes de gerar situações explosivas nos mais diversos aspectos, fosse em termos de violência suscitada pela ambição e cobiça (de que há relatos estarrecedores), fosse ainda por questões políticas ou de contestação à autoridade estabelecida em nome da Coroa Portuguesa. De qualquer modo, esse quadro era já uma grande novidade em se tratando do Brasil, no qual, por pelo menos dois séculos, o extrativismo vegetal e a agricultura canavieira haviam reinado soberanos.
(1) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 156.
(2) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica.
(3) Ibid.(4) Ibid.
(5) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.
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